Krak dos Cavaleiros

sábado, 10 de dezembro de 2011

Entrando em Outro Mundo 2-4




Giovanni também mencionou, como participante do Monastério, um certo diretor de uma empresa publicitária de Londres, que também co­nhecíamos. Embora não tenhamos conseguido confirmar sua participação na organização, descobrimos que seu interesse no ocultismo se estendia muito além dos livros e artigos ocasionais que escrevia, através de pseudônimos, sobre o assunto. Ele também desempenhou um importante papel na publi­cação de The Holy Blood and The Holy Grail, na edição de 1982. E com certeza não é coincidência ter ele uma segunda casa nas vizinhanças de uma certa cidadezinha francesa que tem, como veremos, um papel importante no drama desenrolado em torno do Monastério de Sion.
O resultado realmente importante de nossas conversas com esses ho­mens é que o atual Monastério de Sion não é, como afirmam os críticos, apenas uma invenção de um punhado de franceses com fantasias monarquistas. Em conseqüência de nossos recentes contatos e observações diretas, não temos mais dúvida alguma da existência real do Monastério nos dias de hoje.
Sua suposta linhagem histórica, entretanto, é uma questão completa­mente diferente. Deve-se admitir que os críticos do Monastério têm um pon­to a seu favor, pois a primeira data realmente documentada de sua existência é de 25 de junho de 1956. A lei francesa obriga todas as associações a se registrar, mesmo no caso, paradoxalmente, das assim chamadas sociedades 'secretas'. A declaração do Monastério na época de seu registro foi a de que seu objetivo era o de prover 'ajuda mútua e estudos para seus membros', uma declaração que, embora digna dos personagens dos romances de Dickens por seu brando altruísmo, é também um caso de estudo em matéria de cuida­dosa neutralidade. Ela declara uma única atividade, a de publicar um jornal chamado Circuit, que servia, nas palavras do próprio Monastério, 'para infor­mação e defesa dos direitos e liberdades da população de baixa renda'. A declaração lista quatro funcionários da associação, sendo que o mais inte­ressante e mais conhecido deles é Pierre Plantard, que também era o editor do Circuito
Contudo, desde a época dessa obscura declaração, o Monastério de Sion passou a tornar-se conhecido para um público muito maior. Seus esta­tutos não só foram impressos, devidamente assinados pelo suposto Grão­-Mestre, Jean Cocteau (embora, é claro, pudesse ser uma falsificação), como também apareceram em diversos livros. Sua estréia foi em 1962 em Les Templiers sont parmis nous (Os templários estão entre nós), de Gérard de Sede, que incluía uma entrevista com Pierre Plantard. O Monastério, entre­tanto, teve que esperar mais vinte anos para poder causar impacto no mundo de língua inglesa. Em 1982, o fenomenal best-seller The Holy Blood and The Holy Grail, de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, estourou nas livrarias, e a controvérsia que a partir daí se instalou fez do Monastério um assunto da moda, pronto a ser debatido entre um público muito maior. O que esse livro afirma sobre a organização, e extrapola de seus supostos objetivos, será discutido mais tarde.
Pierre Plantard aparece ao público como um personagem vívido que aperfeiçoara a técnica dos políticos em olhar diretamente para os olhos do entrevistador, enquanto, astutamente, dá uma resposta que pouco tem a ver com a pergunta proposta. Nascido em 1920, tornou-se notícia pela primeira vez na época da França ocupada, em 1942, como o editor do jornal chamado Vaincre pour une jeune chevalerie (A conquista de uma nova ordem de cavalaria), que era marcadamente neutro em relação aos opressores nazistas e que, na verdade, era publicado com a aprovação destes. Era o órgão oficial da ordem Alpha-Galates, uma sociedade semi-maçônica e cavalheiresca ba­seada em Paris, da qual Plantard tornou-se Grão-Mestre com apenas vinte e dois anos de idade. Seus editoriais apareceram primeiramente sob o nome de 'Pierre de France', e então como 'Pierre de France-Plantard' e finalmente ap­enas como 'Pierre Plantard'.  Sua obsessiva procura do que ele considerava ser a versão correta de seu nome, pode ser vista mais uma vez quando adotou o título bem mais eloqüente de 'Pierre Plantard de Saint-Clair' , que foi o nome com que apareceu em The Holy Blood and The Holy Grail e utilizou enquan­to era Grão-Mestre do Monastério de Sion, entre 1981 e 1984. (Vaincre é hoje o título do boletim interno do Monastério, editado por Pierre Plantard de Saint-Clair e seu filho Thomas ).
Ex-projetista de uma fábrica de fogões, Pierre Plantard, apesar de ter exercido considerável influência na história européia, vez ou outra, afirmam alguns, tinha dificuldades em pagar o aluguel. Pierre Plantard de Saint-Clair, sob o cognome de 'Captain Way' (Capitão Caminho), era quem estava por trás da organização do Comitê de Segurança Pública, cujo empenho possibilitou a volta ao poder do General Charles de Gaulle, em 1958.
Vamos agora considerar a natureza essencialmente paradoxal do Monas­tério de Sion. Primeiro, de onde será que realmente vieram as informações públicas sobre a organização, e quão confiáveis são elas? Conforme afirma The Holy Blood and The Holy Grail, a fonte primária é a coleção de sete documentos enigmáticos arquivados na Biblioteca Nacional de Paris, onde são conhecidos como Dossiers secret (dossiês secretos). À primeira vista, eles se parecem com uma mistura entre genealogias históricas, textos e obras alegóricas mais modernas, que são atribuídas a autores anônimos com pseudônimos espalhafatosos ou com nomes de pessoas que não têm nenhuma relação com eles. Muitas dessas notas referem-se à suposta obsessão Merovíngia da socie­dade, e se concentram no famoso mistério de Rennes-le-Château, um remoto povoado na região de Languedoc, ponto de partida para Baigent, Leigh e Lin­coln realizarem suas investigações (falaremos mais sobre isso depois). No entanto, a partir daí surgiram outras questões que, para nós, têm um significa­do muito maior e com as quais havíamos lidado apenas brevemente. O primei­ro volume dos dossiês secretos foi arquivado na biblioteca em 1964, embora a data registrada seja de 1956. O último item foi arquivado em 1967.
Pode-se, com toda razão, caracterizar grande parte do conteúdo dos dossiês como sendo algum tipo de piada. Entretanto, advertimos contra tal reação porque, através de nossa experiência em relação ao Monastério de Sion e seu modus operandi, podemos afirmar que ele é perito na arte de divulgar desinformações de forma completa, deliberada e detalhada. Por trás dessa cortina de fumaça de tergiversação, confusão e tolices, há uma intenção muito coerente e muito séria.
Contudo, a suposta obsessão em restaurar a linhagem Merovíngia, extinta já há muito tempo, a uma posição de poder na França moderna, nem mesmo em um milhão de anos poderia fascinar e motivar, durante um perío­do tão longo, pessoas tão famosas e importantes quanto Leonardo da Vinci e Isaac Newton.A insinuação encontrada nos dossiês secretos que relaciona a questão da sobrevivência da dinastia para além do Rei Dagoberto II, sem mencionar a continuidade de uma linha direta de descendência até o final do século vinte, é na melhor das hipóteses frágil e, na pior, deliberadamente fabricada. Afinal, qualquer um que já tenha tentado traçar a árvore genea­lógica de sua própria família, para além de duas ou três gerações, logo per­cebe o quão complexo e problemático é todo esse processo. Então, mais uma vez, colocamos a questão de como poderia uma causa como essa inspirar gerações de homens e mulheres extremamente inteligentes. É realmente difícil imaginar que as preferências de Newton e Leonardo pudessem ser sobrepu­jadas por uma sociedade britânica cujos objetivos fossem restaurar o poder dos descendentes do Rei Haroldo II (assassinado por William, o Conquista­dor de homens, em 1066).
No que tange ao atual Monastério de Sion, há dificuldades enormes em concretizar os objetivos de restaurar a linhagem dos Merovíngios. Além de fazer da república francesa novamente uma monarquia, proposta rejeitada um século atrás, há ainda a questão de que, mesmo que essa restauração ocor­resse (presumindo-se que fosse possível provar a existência de um sucessor verdadeiro da dinastia dos Merovíngios), essa dinastia em particular não po­deria reclamar a coroa, já que a nação francesa sequer existia naquela época. Conforme colocou de forma sucinta o escritor francês Jean Robin; 'Dagober­to era...um Rei na França, mas de modo algum um Rei da França"
Os dossiês secretos podem parecer um completo absurdo, mas a magni­tude dos esforços e recursos colocados nele, e na manutenção de suas reivin­dicações, nos faz parar para pensar. Mesmo o escritor francês Gérard Sede, que devotou várias páginas muito bem argumentadas com o intuito de colo­car por terra as supostas evidências relacionadas à questão merovíngia co­locadas nos dossiês, admitiu que o volume de recursos à disposição para a pesquisa de estudiosos e acadêmicos era de uma desproporção impressio­nante. Embora seja cáustico acerca 'desse mito delirante', ele, no entanto, concluiu que realmente há um mistério por trás disso tudo. Outra curio­sidade relacionada aos dossiês é a dedução óbvia de que o autor, ou autores, teve acesso aos arquivos oficiais do governo.
Tomemos apenas dois exemplos, dentre muitos: em 1967 uma brochu­ra foi adicionada aos dossiês e se chamava Le serpent rouge (A serpente vermelha), atribuída a três autores, Pierre Feugére, Louis Saint-Maxent e Gas­ton de Koker, com data de 17 de janeiro de 1967, embora o recibo de depósi­to na Biblioteca Nacional seja de 15 de fevereiro. Esse texto extraordinário, de trinta páginas, que se pode apreciar como um exemplar de talentos a po­esia, também compreende astrologia, simbolismo alegórico e alquímico. A parte sinistra, entretanto, é que os três autores foram encontrados enforca­dos em um intervalo de vinte quatro horas, entre os dias 6 e 7 de março daquele ano.A conclusão óbvia é que essas mortes foram resultado da elabo­ração de Le serpent rouge. Entretanto, investigações subseqüentes mostra­ram que a obra foi arquivada junto aos dossiês em 20 de março, após, portan­to, a morte dos três, e o recibo de depósito foi deliberadamente falsificado para mostrar a data de fevereiro. Mas, de longe, o mais assombroso dessa coisa toda, por si só totalmente estranha, é que esses três autores não tinham, na verdade, ligação alguma com esse texto, nem com o Monastério de Sion... Alguém presumivelmente aproveitou-se da bizarra sincronicidade dessas três mortes e as utilizou para seus próprios e estranhos propósitos. Mas por quê? E, como nota Sede, passaram-se apenas treze dias entre as três mortes e o arquivamento do texto na Biblioteca Nacional. Foi, portanto, um trabalho muito rápido, o que torna bastante provável que o(s) autor(es) verdadeiro(s) tinha(m) acesso às investigações confidenciais da polícia.  E Franck Marie, escritor e detetive particular, provou conclusivamente que o mesmo tipo gráfico foi utilizado tanto em Le serpent rouge, como em alguns dos últimos documen­tos dos dossiês secretos.
Chegamos, então, ao caso dos documentos forjados do Lloyds Bank. Tidos como pergaminhos do século dezessete, foram encontrados por um padre francês no final do século passado e, supostamente, provavam a con­tinuidade da descendência Merovíngia. Foram adquiridos por um inglês, em 1955, e depositados em um cofre de uma agência do Lloyds Bank,em Londres. Embora ninguém tenha realmente visto esses documentos, existiam cartas que confirmavam o fato de terem sido depositados. Estas eram assinadas por três proeminentes executivos ingleses, que já haviam tido conexões com o serviço secreto inglês. Entretanto, durante a pesquisa para The Messianic Le­gacy (a seqüência de The Holy Blood and The Holy Grail) , Baigent, Leigh e Lincoln foram capazes de provar que as cartas eram forjadas, embora contivessem partes dos documentos genuínos que portavam as assinaturas verdadeiras, além de cópias dos registros de nascimento dos três executivos. A questão mais significativa e de maiores conseqüências é que, provavelmente, quem quer que as tenha forjado obteve as partes genuínas dos documentos nos arquivos do governo francês, o que implicava seriamente o seu serviço secreto.
Mais uma vez, tivemos uma sensação bastante estranha. Um acúmulo enorme de tempo, esforço e talvez mesmo de perigo pessoal, deve ter sido utilizado para produzir essa trama tão bem elaborada. Contudo, em última análise, todo esse esforço parece ter sido completa e totalmente inútil. Na verdade, toda essa trama segue os ditames da antiga tradição dos serviços secretos, nos quais poucas coisas são o que aparentam ser e as coisas mais indubitáveis sobre determinadas questões podem muito bem ser apenas um exercício de desinformação.
Existe, porém, uma razão para se fazer uso de paradoxos, mesmo que sejam completamente absurdos. Temos a tendência de relembrar os absurdos e mais ainda os aspectos completamente ilógicos que, ao serem deli­beradamente apresentados como argumentos estritamente factíveis, têm um poderoso efeito em nosso inconsciente. Afinal, o inconsciente é o lugar onde são criados nossos sonhos e opera com seus próprios tipos de paradoxo e não-lógica. E é esse inconsciente que motiva, cria, que, assim que tenha sido 'fisgado', continuará a trabalhar nas mensagens subconscientes por anos a fio, extraindo cada pedaço de significado simbólico do mais diminuto fragmen­to do que parece ser um palavreado sem sentido.
Os cépticos, que se orgulham em geral de sua sabedoria universal, são, com freqüência, curiosamente ingênuos, pois vêem tudo como se fosse pre­to ou branco, verdadeiro ou falso, que é exatamente a forma como certos grupos querem ser vistos. Haverá melhor maneira de atrair atenção por um lado, mas, ao mesmo tempo, filtrar a entrada de intrusos indesejáveis ou de curiosos casuais por outro lado, do que se apresentar ao público com uma informação aparentemente intrigante, porém, virtualmente sem nenhum sen­tido? É como se o próprio ato de se aproximar do significado real do Monas­tério por si só já constituísse uma iniciação: se sua disposição não for verda­deiramente essa, então, a cortina de fumaça se encarregará de impedi-lo de realizar uma investigação profunda. Mas, se de alguma forma você realmente tem essa vontade, então logo lhe será dado - ou você mesmo descobrirá, de um modo tão sincrônico que chega a ser suspeito -, aquele conhecimento extra sobre os aspectos interiores da organização que fará, de repente, com que tudo se encaixe em seu lugar.
Em nossa opinião é um grande engano desprezar os dossiês secretos simplesmente porque sua mensagem manifesta é comprovadamente implausí­vel. O volume de trabalho e esforço colocados nos dossiês são um argumen­to em favor da possibilidade deles terem algo real a oferecer. Admitimos que muito tempo se gasta, de maneira obsessiva, em pesquisas ou obras extremamente vastas e completamente tolas, e as horas/trabalho envolvidas nisso sequer resultam em algo que valha a nossa atenção ou respeito. Mas estamos lidando aqui com um grupo que, certamente, está trabalhando so­bre um plano intrincado, e, tomados em conjunto com todas as pistas e pal­pites (que ficarão mais claras no decorrer de nossa jornada), parece claro que alguma coisa está acontecendo. Ou eles estão tentando nos dizer algo ou estão tentando esconder alguma coisa. Enquanto isso, mais pistas sobre sua importância continuam a aparecer.
Então, o que podemos deduzir das afirmações históricas feitas pelo Monastério? Remontarão realmente ao século XI, e contariam as suas fileiras com os nomes ilustres mencionados nos dossiês secretos? Inicialmente, pode-­se afirmar que sempre é difícil provar a existência, atual ou histórica, de uma sociedade secreta. Afinal, quanto mais bem-sucedida é uma entidade em man­ter-se secreta, mais complicado é comprovar sua existência. Entretanto, poden­do-se demonstrar que existem reiterados interesses, assuntos e objetivos comuns entre aqueles que são tidos como pertencentes a esse grupo, durante anos, então é correto e mesmo sensato assumir que tal grupo pode realmente existir ou ter existido.
Mesmo que a lista de chamada dos Grão-Mestres do Monastério (de acordo com o que está escrito nos dossiês secretos) pareça ser totalmente inverossímil, comprovou-se, através da pesquisa de Baigent, Leigh e Lincoln, que ela não é aleatória. Existem realmente conexões persuasivas no pro­cesso sucessório dos Grão-Mestres. Além de se conhecerem, e em muitos casos serem aparentados, esses luminares compartilham determinados inter­esses e preocupações. É sabido que muitos deles estavam associados a mov­imentos esotéricos e a sociedades secretas, tais como a Maçonaria, os Ro­sas-cruzes e a Compagnie du Saint-Sacrement, todas compartilhando alguns objetivos em comum. Por exemplo, há um tema hermético peculiar que é comum às suas literaturas: uma sensação de arrebatamento ante a perspecti­va do Homem se tornar quase igual a Deus, na medida em que seu conheci­mento aumenta ilimitadamente.
Além disso, nossa própria pesquisa independente, que foi apresentada em nosso último livro, confirmou que aqueles indivíduos e famílias que esta­vam supostamente envolvidos com os interesses do Monastério durante o passar dos séculos, também eram a força motriz que sustentou o que pode ser chamado de O Grande Embuste do Santo Sudário.
Como já vimos, tanto Leonardo quanto Cocteau se utilizaram de simbolismo não ortodoxo em suas obras supostamente cristãs. Separados por 500 anos, o imaginário deles apresenta uma notável consistência, e outros escritores e artistas que estiveram ligados ao Monastério também se utiliza­ram desses motivos em suas obras. Isso sugere que eles realmente faziam parte de algum tipo de movimento secreto e organizado, que já estava mui­to bem estabelecido na época de Leonardo.Tanto Leonardo quanto Cocteau foram mencionados como sendo Grão-Mestres, e se levarmos em conside­ração suas preocupações compartilhadas, parece razoável deduzir que eles realmente eram altos membros de algum grupo no mínimo bastante seme­lhante ao Monastério de Sion.
O grosso das evidências reunidas por Baigent, Leigh e Lincoln em Tbe Holy Blood and Tbe Holy Grail, a fim de comprovar historicamente a existência do Monastério, é incontestável. E as demais evidências, que têm sido reunidas por outros pesquisadores, foram publicadas na edição do livro por eles revisada em 1996. (Esse livro é essencial para qualquer pessoa que esteja interessada nesse mistério.)
Todas essas evidências demonstram que havia uma sociedade secreta operando desde o século XII, mas será o atual Monastério de Sion seu herdei­ro verdadeiro? Embora os dois grupos não devam, como querem, estar neces­sariamente vinculados, o atual Monastério tem realmente um conhecimento profundo sobre a história daquela antiga organização. Afinal, foi através de seus membros atuais que ouvimos, pela primeira vez, a respeito de um Monas­tério que existira no passado.
Porém, ter acesso aos arquivos do antigo Monastério não implica ne­cessariamente ser uma continuação genuína deste. Em uma conversa recente, o artista francês Alain Féral, que, como protegido de Cocteau, trabalhou com ele e o conhecia bem, disse-nos, de modo inflexível, que seu mentor não fora Grão-Mestre do Monastério de Sion. Pelo menos, Féral nos assegurou, Cocte­au não estava envolvido com essa organização à época da proclamação de Pierre Plantard de Saint-Clair como Grão-Mestre. Entretanto, Féral conduziu sua própria investigação sobre certos aspectos da história do Monastério de Sion, especialmente no que se relaciona com o vilarejo de Rennes-le-Châ­teau, no Languedoc, e sua opinião é que aqueles que são listados como Grãos Mestres nos dossiês secretos, o que inclui Cocteau, estavam realmente conecta­dos através de uma genuína tradição oculta.

Entrando em Outro Mundo


Entrando em Outro Mundo 1/4

Nossa pesquisa sobre esse 'Leonardo desconhecido' iria se tornar uma investigação longa, envolvente e inacreditável, mais parecida com uma iniciação do que com uma simples viagem do ponto A até o ponto B. Durante nossa iniciação, chegamos a muitos becos sem saída e começamos a nos sentir emaranhados no mundo daqueles que estavam conectados com essas sociedades secretas; e que se divertiam com jogos sinistros e em desempenhar o papel de agentes de desinformação. Perguntamo-nos várias vezes, ainda um tanto aturdidos, como é que uma simples pesquisa sobre a vida e a obra de Leonardo da Vinci poderia ter nos arremessado em um mundo que acreditávamos só existir em filmes impenetráveis como Orphée, do grande surrealista francês Jean Cocteau, que é a descrição de um outro mundo, onde só se pode entrar atravessando um espelho.
Na verdade, foi esse grande representante do bizarro, Cocteau, quem nos daria ainda outras pistas, não só sobre as crenças pessoais de Leonardo, como também em relação à existência ininterrupta de uma tradição ocultista que se ocupava dos mesmos assuntos tão caros a ele. Iríamos descobrir que Cocteau (1889-1963) realmente parecia ter se envolvido com essa sociedade secreta; o que nos permite inferir isso será discutido mais tarde. Primeiro vamos analisar o conjunto de evidências que está mais à mão, aquele que está bem diante de nossos olhos.
Surpreendentemente próximo às luzes brilhantes e glamourosas da Praça Leicester, em Londres, está a igreja de Notre-Dame de France. Loca­lizada no bairro de Leicester, vizinha de uma sorveteria da moda, é bem difícil de se achar, porque sua fachada não oferece a resplandecência que asso­ciaríamos à maioria das igrejas católicas. Poder-se-ia passar por ela sem se­quer notá-la e certamente sem perceber o quanto sua aparência se diferencia da maioria das outras igrejas cristãs.
Construída em 1865, em um local relacionado aos Cavaleiros Templá­rios, Notre-Dame de France foi quase totalmente destruída pelas bombas nazistas durante a blitzkrieg (Em alemão no original. Palavra referente aos rápidos e maciços ataques alemães durante a II Guerra Mundial) e reconstruída no final dos anos 50. Passando por seu modesto aspecto exterior, o visitante entra em uma sala grande, alta e ventilada que, à primeira vista, parece ter sido projetada com a mesma ar­quitetura típica das igrejas modernas. Quase desprovida dos ornamentos usuais que adornam muitas outras igrejas, ela possui, contudo, pequenas placas re­tratando a Via Crucis; um altar alto sob uma tapeçaria retratando uma Virgem jovem e loura, rodeada por adoráveis animais, os quais, embora lembrem al­gumas das cenas mais engraçadinhas dos filmes de Disney, ainda assim cabem no que se pode chamar de uma descrição aceitável de Maria quando jovem. E há também alguns anjos de gesso reinando sobre as laterais da capela. Do lado esquerdo de quem olha o altar de frente, entretanto, há uma pequena capela que não tem nenhuma estátua a ser cultuada, embora, na verdade, tenha seu próprio séquito de devotos. Os visitantes, admirados, tiram fotogra­fias do mural incomum, de autoria de Jean Cocteau, que o terminou em 1960. A igreja, por sua vez, orgulha-se de vender cartões-postais estampados com a sua obra de arte, que é bastante famosa. Mas, como acontece com os chama­dos trabalhos cristãos de Leonardo, esse afresco, quando examinado de modo mais meticuloso, revela um simbolismo muito pouco ortodoxo. A comparação com as obras de Leonardo não é de modo algum fortuita. Mesmo levando-se em conta o espaço de 500 anos entre uma obra e outra, seria possível imagi­nar que Leonardo e Cocteau estiveram, de algum modo, colaborando entre si através dos tempos?
Antes de centrarmos nossa atenção nessa preciosa obra de Cocteau, façamos uma visita à igreja de Notre-Dame de France. Embora não seja a única, com certeza é algo bastante incomum uma igreja católica ter um for­mato circular, sendo este bastante enfatizado aqui, em diversos detalhes. Por exemplo, há uma notável cúpula em formato de clarabóia, adornada com desenhos de círculos concêntricos, os quais, não seria tolice se assim inter­pretássemos, formam uma espécie de teia de aranha. E as paredes, tanto as de dentro quanto as de fora, contêm um repetitivo motivo de cruzes de lados iguais, e ainda mais círculos.
A igreja do pós-guerra, relativamente nova, portanto, e que, como desco­briremos, era um ponto de convergência para os grupos cujas crenças reli­giosas não eram tão ortodoxas quanto nos levariam a acreditar os livros de história, incorporou com muito orgulho em sua construção uma laje de pe­dra que pertencera à Catedral de Chartres, a jóia da coroa da arquitetura gótica. Pode-se argumentar que nada há de tão excepcional ou sinistro em utilizar essa laje de pedra na construção, pois afinal, durante a guerra, essa igreja era um ponto de encontro da resistência francesa, e uma pedra vinda de Chartres seria, com certeza, um símbolo pungente da terra natal a ser defendida. Entretanto, nossa pesquisa iria mostrar que há ainda muito mais do que isso.
Dia após dia, muitas pessoas, londrinos e visitantes de outros lugares, entram em Notre-Dame de France para rezar e assistir aos serviços religio­sos. A igreja parece ser uma das mais freqüentadas de Londres, além de servir como um abrigo conveniente para os moradores de rua, que são tratados com extrema bondade. Porém, é o mural de Cocteau que age como um ímã para a maioria dos que lá vão, como parte do roteiro de sua visita a Londres, embora também aproveitem esse oásis de sossego para fugir ao barulho e à agitação da metrópole.
Ao se olhar o afresco pela primeira vez, é bem possível que se fique um tanto desapontado, pois, como muitas outras obras de Cocteau, a princípio ele parece ser pouco mais do que um esboço pintado, o retrato de uma cena simples com um parco colorido sobre o gesso. O afresco mostra a crucifi­cação: a vítima rodeada de atemorizados soldados romanos, mulheres morti­ficadas e discípulos. Estão aí presentes, pode-se dizer, todos os elementos necessários para se retratar a cena tradicional da crucificação de Jesus. Con­tudo, assim como na Última Ceia de Leonardo, ela também merece um exame mais cuidadoso, mais crítico e, até mesmo, mais sensato.
É bem possível que a figura central, vítima de um dos mais terríveis tipos de morte através de tortura, seja Jesus. No entanto, a verdade é que, simplesmente, desconhecemos sua identidade, porque o vemos apenas do joelho para baixo. A parte de cima do corpo não é mostrada. E aos pés da cruz há uma enorme rosa vermelho-azulada.
No primeiro plano há um personagem que não é nem romano nem discípulo, e está se afastando da cruz. Sua fisionomia transparece um grande incômodo relacionado à cena. De certo, presenciar a morte de qualquer homem em tais circunstâncias é um acontecimento extremamente perturba­dor, algo certamente angustiante. Ainda mais nesse caso em particular, pois deve ser algo indescritivelmente traumático estar presente quando o Deus encarnado está se esvaindo em sangue. No entanto, a expressão desse personagem não é a de um homem consternado, nem a de um devoto desolado. Se formos realmente honestos, o cenho franzido e o olhar de soslaio caracter­izam uma testemunha um tanto desiludida, até mesmo cheia de aversão. Essa reação não é de alguém que está disposto, mesmo que remotamente, a subm­eter-se à autoridade de outrem, postar-se de joelhos e começar a orar, mas sim a de alguém que expressa sua opinião diante de um igual.
Quem será essa presença que comparece ao ato mais sagrado do cris­tianismo com um ar de desaprovação? Ninguém mais, ninguém menos do que o próprio Cocteau. E se considerarmos que Leonardo retratou a si mes­mo desviando seu olhar para longe da Sagrada Família na Adoração dos Reis Magos, e de Jesus na Última Ceia, há pelo menos alguma semelhança entre essas obras. E quando levamos em conta as afirmações de que os dois artistas eram membros de alto escalão da mesma e herética sociedade secreta, torna-­se irresistível a realização de uma investigação mais profunda.
Pairando sobre a cena, há um sol negro, como um olhar ameaçador, espalhando seus raios escuros por todo o céu. Diante dele posta-se uma pessoa, talvez um homem, com a silhueta recortada contra o horizonte, cu­jos olhos erguidos e salientes parecem-se incrivelmente com um par de seios buliçosos, Quatro soldados romanos, em poses épicas, colocam-se ao redor da cruz. Seguram lanças em ângulos estranhos e talvez significativos, sendo que um deles porta um escudo, que tem como emblema uma águia estilizada. Aos pés dos dois está uma peça de tecido sobre o qual alguns dados estão espalhados. A soma total dos números que aparecem é igual a 58.
Um jovem insípido cruza suas mãos aos pés da cruz. Seu olhar um tan­to vago observa uma das duas mulheres que são retratadas. Elas, por sua vez, parecem estar unidas, formando um grande "M", bem debaixo do homem com olhos em forma de seios, A mais velha das mulheres olha para baixo, aflita, parecendo verter lágrimas de sangue. A mais jovem, que literalmente se afasta, dá as costas à cruz, mesmo estando próxima a essa. Outra figura em forma de 'M' repete-se na frente do altar, que está diante do mural. Na ex­trema direita da obra, a última das figuras retratadas é a de um homem de idade indeterminada, cujo único olho visível tem a aparência inconfundível de um peixe.
Alguns estudiosos têm dito que o ângulo das lanças dos soldados forma um pentagrama, um símbolo nada ortodoxo e que não tem lugar em uma cena cristã tradicional como essa. Esse símbolo, mesmo sendo intrigante, não faz parte de nossa investigação. Como já vimos, parecem existir ligações visíveis entre as mensagens subconscientes presentes nos trabalhos religio­sos de Cocteau e Leonardo, e é esse uso compartilhado de certos símbolos que nos chama a atenção.
Os nomes de Leonardo da Vinci e Jean Cocteau aparecem na lista dos Grãos Mestres daquela que se auto denomina uma das mais antigas e influen­tes sociedades secretas da Europa, o Prieuré de Sion, o Monastério de Sion. Fonte de muitas controvérsias, sua existência tem sido colocada em dúvida e, portanto, quaisquer de suas supostas atividades têm sido, com freqüência, ridicularizadas, e suas conexões, ignoradas. No início, tivemos a mesma reação, porém, investigações posteriores revelaram que a questão não era assim tão simples.
O Monastério de Sion chamou atenção, pela primeira vez, dos povos de língua inglesa somente em 1982, através do best-seller The Holy Blood and the Holy Grail, de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, em­bora sua edição original em francês seja do início dos anos 60. O Monastério é uma ordem cavalheiresca e semi-maçônica com alguma ambição política e, parece, considerável força nos labirintos do poder. Posto isso, é bastante difícil categorizar o Monastério, talvez porque haja algo essencialmente quimérico em relação à operação como um todo. Nada há de ilusório, entretanto, em relação à informação que nos foi passada por um representante do Monas­tério, com quem nos encontramos no início de 1991. Esse encontro foi re­sultado de uma série de cartas, um tanto estranhas, enviadas a nós, após ter­mos participado de um debate no rádio sobre o Sudário de Turim.
Os fatos relacionados a esse encontro um tanto surreal estão detalhados em um livro anterior. Por ora, diremos apenas que um certo 'Giovanni', a quem só conhecemos através desse pseudônimo, um italiano que dizia per­tencer ao alto escalão do Monastério de Sion, havia nos observado cuida­dosamente durante os primeiros estágios de nossa pesquisa sobre Leonardo e o Sudário. Qualquer que tenha sido a razão, ele finalmente decidiu entrar em contato conosco e falar sobre certos interesses da organização e, quem sabe, nos envolver em seus planos. Grande parte das informações que nos passou foi divulgada em nosso livro sobre o Sudário de Turim, após termos, de um modo um tanto tortuoso, checado a fundo todas elas. Porém, mais uma vez, essas informações não são pertinentes a este trabalho e, portanto, não falaremos delas aqui.
Apesar das conseqüências possivelmente espantosas, ou mesmo chocantes, relacionadas às informações de Giovanni, nós nos sentíamos real­mente tentados a levar a sério a maior parte delas, pois nossas pesquisas as confirmavam. Por exemplo, a imagem do Sudário de Turim comporta-se como uma fotografia, conforme já demonstramos, pois é exatamente isso o que ela é. E se as informações de Giovanni, como ele afirmou, realmente tivessem como fonte os arquivos do Monastério, então existe uma razão efetiva para seguirmos a linha de raciocínio proposta por essa organização, quem sabe, talvez, com uma pitada de saudável ceticismo, sem de modo algum negá-las de forma imediata e definitiva, como fazem muitos dos inimigos do Monas­tério.
Quando começamos a nos aprofundar no mundo secreto de Leonardo, logo percebemos que, se essa sociedade oculta realmente fosse parte inte­gral da sua vida, então seria bem possível que fosse a fonte geradora das forças que o motivavam. Se ele realmente fizesse parte de alguma rede pode­rosa do submundo, então talvez seus influentes patronos, como os Lorenzo de Medici e Francisco I, da França, também o fizessem. Tudo indica que havia realmente uma sociedade secreta que alimentava as obsessões de Leonardo: mas será que era, como alguns alegam, o Monastério de Sion?
Se as afirmações relacionadas ao Monastério forem verdadeiras, então essa organização já era venerável quando Leonardo ingressou em suas filei­ras. Sendo tão antigo quanto for, porém, o Monastério deve ter exercido uma poderosa atração, talvez mesmo inigualável, para o jovem artista e para mui­tos de seus incrédulos colegas renascentistas. Talvez, como os modernos maçons, ela propiciasse um avanço material e social, facilitando os passos do jovem artista entre os meandros da corte européia mais influente, mas isso não explica a evidente profundidade das estranhas crenças pessoais de Leo­nardo. Tenha ele feito parte ou não, a sociedade exerceu um forte apelo sobre o seu espírito, tanto quanto sobre os seus interesses materiais.
A base do poder do Monastério de Sion reside, ao menos em parte, na sugestão de que seus membros eram, e sempre foram, guardiães de um grande segredo, um segredo que, se fosse tornado público, faria bal­ançar os alicerces tanto da Igreja quanto do Estado. O Monastério de Sion, algumas vezes chamado de Ordem de Sion ou Ordem de Nossa Senhora de Sion, além de alguns outros títulos pouco utilizados, afirma que sua fundação remonta a 1099, época da primeira Cruzada. E mesmo essa data serve apenas ao propósito de institucionalizar o grupo, guardião de um conhecimento explosivo, que, porém, já existia há muito mais tempo. O Monastério afirma ser a força criadora por trás dos Cavaleiros Templários, esse original corpo medieval de monges-soldados de sinistra reputação. O Monastério e os Templários se tornaram, ao menos assim se afirma, virtualmente a mesma organização, presidida pelo mesmo Grã-­Mestre, até que fossem vítimas de um cisma e se separassem, em 1188. O Monastério continuou sob a custódia de uma série de Grão-Mestres, in­cluindo alguns dos nomes mais ilustres da história, como Isaac Newton, Sandro Filipepi (conhecido como Botticelli), Robert Fludd, o filósofo do ocultismo inglês e, claro, Leonardo da Vinci que, alega-se, presidiu o Monas­tério durante os últimos nove anos de sua vida. Entre seus líderes mais recentes estiveram Victor Hugo, Claude Debussy e o artista, escritor, roteirista e diretor de filmes Jean Cocteau. E embora estes não fossem Grãos Mestres, o Monastério, afirmam alguns, vem atraindo diversos lumi­nares ao longo dos séculos, como Joana D'Arc, Nostradamus (Micheal de Notre Dame) e até mesmo o Papa João XXIII.
Celebridades à parte, a história do Monastério de Sion, segundo se alega, envolve gerações e gerações de algumas das famílias mais influen­tes da aristocracia européia. Estas incluem os d'Anjous, os Habsburgs, os Sinclair e os Montgomery.
O objetivo público do Monastério é proteger os descendentes da antiga dinastia dos Merovíngios, reis do que hoje é a França, e clã deten­tor do poder nessa região, do século quinto até o assassinato de Dagoberto II, no final do século dezessete. Seus detratores, entretanto, afirmam que o Monastério de Sion passou a existir apenas a partir de 1950 e que consiste de um punhado de mitômanos sem qualquer poder real, mo­narquistas com ilimitados sonhos de grandeza.
Então, se por um lado temos as afirmações do próprio Monastério sobre sua linhagem e raison d'étre,  por outro, temos as opiniões de seus críticos. Deparamo-nos, então, com um imenso rio sem pontes e, para sermos sinceros, estávamos cheios de dúvidas sobre continuar se­guindo com essa linha de pesquisa. Entretanto, percebemos que, embora uma análise do Monastério recaia logicamente em duas frentes, ou seja, as questões pertinentes à sua existência recente e suas próprias alegações de cunho histórico, o assunto é por demais complexo e nada é muito claro em relação ao que quer que esteja em conexão com essa organização. Uma cone­xão dúbia ou uma aparente contradição em relação às atividades do Monastério inevitavelmente faz com que os cépticos denunciem a coisa toda como um completo absurdo do início ao fim. Devemos relembrar, contudo, que estamos lidando com fabricantes-de-mitos, que com freqüência preocupam-­se mais em tornar convenientes, através do uso de imagens arquetípicas, idéias poderosas e até mesmo chocantes, do que em transmitir uma verdade de modo literal.
Que o Monastério existe atualmente, não temos a menor dúvida. Nos­sas conversas com Giovanni nos persuadiram de que, no mínimo, não era um confidente trapaceiro e ocasional, e que deveríamos dar crédito às suas infor­mações.Ele não apenas nos passou informações inestimáveis sobre o Sudário de Turim, como também nos supriu com detalhes relacionados a vários out­ros indivíduos que estão atualmente envolvidos com o Monastério, além de informações sobre outras organizações esotéricas, talvez associadas, tanto na Inglaterra quanto no continente europeu. Mencionou, por exemplo, como sendo seu companheiro de organização, um publicitário com o qual um de nós já havia trabalhado nos anos 70. À primeira vista, a afirmação de Giovan­ni sobre esse homem nos pareceu apenas uma maliciosa fantasia de sua parte, porém, dali a alguns meses, algo muito estranho aconteceu.
Por meio de uma notável sincronicidade, o publicitário compareceu a uma festa dada por uma de nossas amigas, em novembro de 1991, em um restaurante de que ela gostava em particular, bem longe de sua casa em Home Counties (bairro da cidade de Londres) , mas logo na esquina da casa de um de nós. Foi, portanto, uma enorme surpresa encontrar alguém que havia sido mencionado por Giovan­ni, como sendo um dos membros da organização, em um restaurante nas vizinhanças. Entramos, então, em contato e, logo depois, fomos convidados a ir até sua casa em Surrey. Sempre uma boa companhia, passamos horas bastante agradáveis com ele e sua esposa, mas pouco a pouco o fato se tornou evi­dente: ele era membro do Monastério de Sion.
Nossos contatos resultaram em um convite para uma festa em sua casa de campo, após as festividades de Natal. Era uma festa chique, porém, acon­chegante, e os outros convidados eram charmosos cosmopolitas, todos admi­ravelmente, diríamos até excessivamente, interessados em nosso trabalho sobre Leonardo e o Sudário. Era algo muito lisonjeiro, mas, ao mesmo tempo, um tanto inquietante, especialmente porque todos eram executivos do siste­ma financeiro internacional.
Sabíamos que nosso anfitrião tinha conexões com algum tipo de organi­zação maçônica mas, apesar de sua cultivada e com freqüência confusa in­teligência, era também praticante do ocultismo. Sabemos que isso é verdade, em parte, porque ele mesmo nos contou, deliberadamente. Com certeza, queria que tomássemos conhecimento de algo sobre as conexões, suas e de seu círculo de amigos, com o ocultismo, mas o que exatamente? Qualquer que seja a natureza de sua agenda secreta, havíamos chegado à conclusão de que o Monastério existia em um mundo de homens e mulheres cultos e influen­tes.



sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Prentice Mulford


Prentice Mulford


Prentice Mulford nasceu em Sag Harbor, Long-Island, distrito de Nova Iorque, a 5 de abril de 1834 e faleceu a 27 de maio de 1891, numa barca de sua propriedade
Foi o pai de todo o movimento ocultista da América do Norte, sendo sua obra ?Nossas Forças Mentais?, o principal livro da psicologia moderna, na qual foram beber suas primeiras idéias os propagandistas da Ciência Cristã, do Novo Pensamento, do Cristianismo Esotérico, da Nova Psicologia e de muitos outros ramos do mentalismo.
Este mestre foi o primeiro a mostrar o lado prático e utilitário dos conhecimentos ocultos e das forças mentais, ensinando-nos a empregá-las na vida, para realizar nossas aspirações e obter maior felicidade.
Sem esta aplicação e adaptação à nossa vida pratica, as sublimes concepções filosóficas da Índia e os admiráveis conhecimentos do antigo ocultismo ocidental teriam pouco valor para o homem, porquanto seriam inúteis para a melhora de sua sorte e para seu progresso neste planeta.
Prentice Mulford começou a escrever com a idade de 29 anos, tendo, antes disso, trabalhado muitos anos nas minas da Califórnia. Em 1866, entrou para a carreira jornalística, escrevendo para o ?The Golden Era? e ?The Dramatic Chronicle? que depois se transformou em ?San Francisco Chronicle?. Em 1872, esteve na Inglaterra fazendo propaganda da Califórnia, e o fez por meio de conferências, artigos, etc. Em 1873, voltou aos Estados Unidos, colaborando, então, no ?New Iork Graphic?. Em 1883, cansado de escrever sobre escândalos, assassinatos, roubos, acidentes e outros acontecimentos deste gênero, que o povo acha indispensável conhecer, retirou-se para uma pequena casa que construíra no campo, a 7 milhas de Nova Iorque. Foi quando começou a escrever sua monumental obra ?Nossas Forças Mentais?, cuja primeira publicação aconteceu em Boston, em 1884.
O falecimento de Prentice Mulford ocorreu em circunstâncias notáveis, pois, na ocasião, não havia ninguém com ele, porém todos os sinais indicavam que abandonou o corpo durante o sono e sem sofrimento algum. Achava-se deitado num leito improvisado e tudo o que o rodeava estava perfeitamente em ordem. No seu rosto não havia indicação de sofrimento de qualquer espécie, nem de mínima agitação interior.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

São João Batista - por Leonardo da Vinci

João Cristo

Ao pesquisar o papel desempenhado por Leonardo da Vinci na falsificação
que é o Sudário de Turim, ficamos surpresos ao descobrir com que
freqüência João Batista aparece na vida do artista. Não apenas Leonardo era
um grande admirador do santo, como muitos dos lugares ligados ao Mestre
eram, talvez coincidentemente, dedicados a João. A maior parte ficava em
Florença, a amada cidade de Leonardo, que abriga em seu coração o
extraordinário Batistério. Em 1995, quando fazíamos um documentário para
televisão sobre o Sudário, visitamos o local com uma pequena equipe de
filmagem, o que nos assegurou ter o local somente para nós durante algum
tempo - o mágico acrônimo BBC é praticamente um "abre-te sésamo" -,
antes que suas portas fossem abertas ao público. O Batistério é uma
estranha construção octogonal que data do período da Primeira Cruzada e
cujo formato incomum possivelmente se deve aos templários, que (assim
como suas características igrejas redondas) também promoviam a forma
octogonal, com base na crença de que assim era o Templo de Salomão em
Jerusalém. Nosso principal interesse em visitá-lo era que uma das paredes
laterais da construção abrigava a única escultura remanescente de Leonardo
(um trabalho em conjunto com Giovanni Francesco Rustici). Tratava-se, é
claro, de uma estátua de João Batista. E, como em todas as imagens de João
feitas por Leonardo, ele é retratado com o dedo indicador em riste.
Como vimos, a Heresia Européia está parcialmente centrada na figura do
Batista, embora as verdadeiras razões disso permaneçam deliberadamente
obscuras: de fato, desde que começamos nossa pesquisa sobre o assunto,
alguns anos atrás, logo tornou-se evidente que isso constituía um segredo
interno de organizações como as dos Cavaleiros Templários e a da
Maçonaria. No entanto, por que ainda se considera prudente manter esse
segredo tão zelosamente guardado?
A visão tradicional que os cristãos têm de João Batista é bastante conhecida.
Acredita-se que o ministério de Jesus tem início com seu batismo por João -
de fato, dois dos Evangelhos canônicos começam com João pregando às
margens do rio Jordão. A imagem que os autores criam de João é a de um
evangelista severo e asceta que deixa a vida de ermitão no deserto para
conclamar o povo de Israel a arrepender-se de seus pecados e ser batizado.
Desde o início, há algo tão inflexível e frio em João que faz com que os
leitores atuais sintam-se desconfortáveis; na verdade, não há nada nos
Evangelhos que justifique a extrema veneração que lhe dedicaram várias
gerações de hereges - com certeza nada da reverência que lhe demonstraram
homens de intelecto privilegiado como Leonardo da Vinci.
Os relatos dos Evangelhos, de fato, pouco revelam sobre João Batista. Eles
nos dizem que o batismo por ele ministrado era um sinal público de
arrependimento, e que muitos responderam ao seu chamado e foram
ritualmente imersos nas águas do rio Jordão, inclusive Jesus. De acordo
com Mateus, Marcos, Lucas e João, o Batista proclamava-se um mero
precursor do Messias profetizado, que ele reconhecia ser Jesus. Tendo
cumprido seu papel, praticamente desapareceu de cena, embora existam
indicações de que continuou a batizar durante algum tempo.
O Evangelho de Lucas conta-nos que Jesus e João eram primos, e, junto
com o relato da concepção e do nascimento de Jesus, oferece uma descrição
da concepção e do nascimento de João - que acontecem paralelamente aos
de Jesus mas são claramente menos miraculosos. Os pais de João, o
sacerdote Zacarias e Isabel, não têm filhos e estão em idade avançada, mas
são informados pelo anjo Gabriel de que foram escolhidos para ter um filho;
pouco tempo depois Isabel, já na menopausa, concebe. É ao encontro de
Isabel que vai Maria quando se descobre grávida de Jesus. Isabel está então
com seis meses de gravidez, e na presença de Maria seu filho ainda não
nascido "saltou no seu ventre"; é assim que ela fica sabendo que a criança
de Maria é o tão aguardado Messias. Isabel então louva Maria, o que a
inspira a proclamar o "cântico" que hoje é conhecido como Magnificat.
Lemos nos Evangelhos que, logo após ter batizado Jesus, João foi preso a
mando de Herodes Antipas. A razão alegada é que João havia publicamente
condenado o recente casamento de Herodes com Herodíades, ex-mulher de
seu meio-irmão Filipe - casamento que, sendo ela divorciada de Filipe,
contrariava as leis judaicas. Após um período incerto dentro da prisão, João
é executado. Na história conhecida, Salomé, filha de Herodíades com o exmarido,
dança para o padrasto na comemoração do aniversário deste,
deixando-o tão embevecido que ele promete dar a Salomé tudo o que ela
desejar, até mesmo "metade de seu reino". Induzida por Herodíades, ela
pede a cabeça de João Batista em uma bandeja. Sem poder voltar atrás em
sua palavra, Herodes, que a essa altura já começara a admirar o Batista,
relutantemente concorda e manda decapitar João. Os discípulos de João
obtêm permissão para levar seu corpo e sepultá-lo, embora não se saiba ao
certo se levaram também a cabeça.
A história tem todos os elementos - um rei tirânico, uma mãe madrasta, uma
dançarina púbere e a morte horrível de um famoso homem santo -, e por
isso forneceu um fértil material para várias gerações de artistas, poetas,
músicos e dramaturgos. Seu fascínio parece não ter fim, o que talvez seja
curioso para um episódio que consiste em apenas alguns versos dos
Evangelhos. Duas adaptações em particular escandalizaram o público no
início do século XX. Uma delas é a ópera Salomé, de Richard Strauss, que
retrata uma garota promíscua tentando seduzir João na prisão e, tendo sido
repudiada, pede sua cabeça em vingança, beijando então seus lábios já sem
vida de modo triunfante. A peça de mesmo nome de Oscar Wilde teve uma
única apresentação devido ao terror causado pela pré-publicidade, que se
centrou basicamente no fato de que ele próprio representava o papel-título.
Entretanto, o famoso cartaz de Aubrey Beardsley para a peça ainda
permanece como uma descrição gráfica da interpretação de Wilde da
história bíblica e, mais uma vez, centra-se na suposta luxúria necrófila de
Salomé.
Esse inebriante coquetel de imaginação erótica tem pouca ligação com o
seco relato do Novo Testamento, cujo único propósito parece ser o de
estabelecer, sem sombra de dúvida, que João era o precursor de Jesus e
espiritualmente inferior a este - e também preencher o papel profetizado do
Elias reencarnado, que deveria preceder a chegada do Messias.
Entretanto, há uma outra fonte facilmente acessível de informação acerca de
João: o livro Antiquities of the Jews, de Josefo. Ao contrário de sua suposta
referência a Jesus, a autenticidade da referência a João não está em debate
porque se encaixa naturalmente dentro da narrativa, e é um relato impessoal
que não faz elogios a João - e difere dos relatos dos Evangelhos de modo
significativo.
Josefo registra a pregação e o batismo ministrado por João, e o fato de que
sua popularidade e influência sobre as massas alarmavam Herodes Antipas,
que então o mandou prender e executar em uma espécie de "manobra
preventiva". Josefo não fornece detalhes de sua prisão ou das circunstâncias
ou forma da sua execução, e não faz qualquer menção à suposta crítica de
João ao casamento de Herodes. Ele enfatiza o enorme apoio popular a João
e acrescenta que, não muito tempo após sua execução, Herodes sofreu uma
séria derrota em batalha, o que o povo tomou como sinal de punição pelo
crime que ele cometera contra o Batista.
O que podemos concluir sobre João a partir dos relatos dos Evangelhos e de
Josefo? Para começar, a história de que ele batizou Jesus deve ser autêntica,
pois sua inclusão sugere que esse fato era por demais conhecido para ser
excluído - mesmo considerando a tendência dos autores dos Evangelhos em
marginalizar João sempre que possível.
João pregava em Peréia, a leste do Jordão, um território que Herodes
também governava, além da Galiléia. A descrição em Mateus é
contraditória; o Evangelho de João é mais específico e cita duas pequenas
cidades onde João batizava: "Betânia, do outro lado do Jordão" (1:28) - um
vilarejo próximo à principal rota comercial - e Enon, no norte do vale do
Jordão (3:23). Os dois lugares são bastante distantes um do outro, portanto
parece que João viajou muito durante sua missão.
A impressão do ermitão asceta fomentada pelas traduções inglesas dos
Evangelhos pode, de fato, representar um erro de conceito. A palavra grega
eremos, traduzida como "deserto" ou "local despovoado", pode significar
qualquer lugar isolado. É significativo que a mesma palavra seja utilizada
para designar o local onde Jesus alimentou os cinco mil. Carl Kraeling, em
seu estudo sobre João, considerado o texto acadêmico de referência sobre o
assunto, também argumenta que a dieta de "gafanhoto e mel" que João
supostamente consumia, não implica especificamente um estilo de vida
ascético.
É provável também que a missão de João não se limitasse apenas aos
judeus. O relato de Josefo, embora de início apresente João exortando "os
judeus" à piedade e a uma vida virtuosa, acrescenta que "outros se juntavam
[i.e. ao redor dele] (pois também ficavam extremamente entusiasmados ao
ouvir seus ensinamentos)". Alguns estudiosos acreditam que esses "outros"
só podem ser não-judeus, e de acordo com o britânico Robert L.Webb,
estudioso da Bíblia,
...não há nada no conteúdo a sugerir que não poderiam ser gentios. A
localização do ministério de João sugere que ele poderia estar em contato
com os gentios que viajavam pelas rotas de comércio vindos do Oriente,
bem como com os gentios que viviam na região da Transjordânia.
Uma outra concepção errônea é a da idade de João, que se considera ser
mais ou menos a mesma de Jesus. Entretanto, a conclusão a que se chega a
partir dos quatro Evangelhos é de que João pregava já há muitos anos quando
batizou Jesus e que era, talvez por uma grande margem de diferença, o
mais velho dos dois. (A história do nascimento de João no Evangelho de
Lucas é, como veremos, em grande parte inventada e inverossímil.)
Como a de Jesus, a mensagem de João era um ataque implícito ao culto que
se praticava no Templo de Jerusalém, não apenas no que dizia respeito à
possível corrupção de seus oficiantes, mas a tudo o que ele representava. A
convocação de João ao batismo pode ter irritado as autoridades do Templo,
não somente porque ele afirmava que o batismo era espiritualmente superior
aos seus ritos, como também porque era gratuito.
E há também as irregularidades presentes nas descrições sobre sua morte,
especialmente quando comparadas com o relato de Josefo. Os motivos
imputados a Herodes - medo da influência política de João (Josefo) e raiva
por sua crítica ao casamento do governante (Evangelhos), não são mutuamente
excludentes. Os arranjos conjugais de Herodes Antipas tiveram,
realmente, implicações políticas, mas não por causa da mulher com quem
ele se casara. A questão era a mulher de quem ele teve que se divorciar para
se casar novamente. Sua primeira esposa era uma princesa do reino árabe de
Nabatéia, e o insulto que a separação representou para essa família real
deflagrara uma guerra entre os dois reinos. Nabatéia fazia fronteira com o
território de Peréia, governado por Herodes e onde João fazia suas
pregações. Portanto, a censura de João ao casamento de Herodes
efetivamente o colocou do lado do rei inimigo, Aretas, com a ameaça
implícita de que, se a população concordasse com João, poderia acabar
apoiando Aretas contra Antipas.
Talvez isso pareça por demais acadêmico, mas intriga o fato de que os
Evangelhos tenham "suavizado" os verdadeiros motivos que levaram
Herodes a executar João. Se reconhecemos que esses livros são
essencialmente material de propaganda e que quando obscurecem algum
acontecimento o fazem de modo deliberado, a outra possibilidade levanta a
questão de por que os autores dos Evangelhos se incomodariam com esse
episódio.
É compreensível que os autores dos Evangelhos quisessem censurar
qualquer sugestão de que João gozava de grande popularidade - isto é
compatível com o tratamento geral que dedicam a ele -, mas se tivessem
que inventar alguma coisa, seria de esperar que tramassem uma história que
apoiasse Jesus de algum modo. Por exemplo, poderiam ter dito que João
fora preso por proclamar que Jesus era o Messias.
Os relatos dos Evangelhos também cometem um engano. Dizem que João
criticava Herodes Antipas porque este se casara com a ex-mulher de seu
meio-irmão Felipe. No entanto, embora as circunstâncias do casamento
sejam historicamente precisas, o meio-irmão em questão era na verdade um
outro Herodes, não Felipe. Este segundo Herodes era o pai de Salomé.
Apesar do fato de João, como Madalena, ter sido deliberadamente
marginalizado pelos autores dos Evangelhos, podem-se ainda encontrar
pistas acerca de sua influência sobre os contemporâneos de Jesus. Em um
episódio cujas implicações parecem não ter ocorrido à maioria dos cristãos,
os discípulos de Jesus dizem a ele: "Senhor, ensina-nos a orar, assim como
também João ensinou aos seus discípulos". Lemos então que Jesus ensinoulhes
a oração que viria ser conhecida como Pai Nosso ("Pai nosso que estais
no céu, santificado seja o vosso nome...").
Já no século XIX o grande egiptólogo Sir E. A. Wallis observou que as
palavras iniciais do "Pai Nosso" se originavam de uma antiga oração
egípcia para Osíris-Amon, que assim começa: "Amon, Amon que estais no
céu...". É claro que isso data de séculos antes de João e Jesus, e que o "Pai"
invocado na oração não é nem Jeová nem seu suposto filho, Jesus. De
qualquer modo, o "Pai Nosso" não foi criado por Jesus.
Diz-se que João prostrou-se em sinal de reverência ante a figura de Jesus ao
batizá-lo. Ficamos com a impressão de que toda a sua missão, talvez sua
vida inteira, foi dirigida para esse único evento. Na verdade, porém, existem
claras indicações de que João e Jesus, embora estreitamente associados no
início da trajetória deste último, eram rivais irreconciliáveis. Isso não
escapou à atenção da maioria dos mais respeitados estudiosos da Bíblia.
Como escreve Geza Vermes:
O objetivo dos autores dos Evangelhos era, sem dúvida, dar a impressão
de amizade e estima mútua, mas suas tentativas são superficiais, e um
exame mais cuidadoso das fragmentárias evidências sugere que, pelo menos
no que diz respeito aos seus respectivos discípulos, os sentimentos de
rivalidade não estavam ausentes.
Vermes também descreve a insistência de Mateus e Lucas na precedência
de Jesus sobre João como algo "forçado". Realmente, para leitores
objetivos, existe algo profundamente suspeito na repetida ênfase, um tanto
enjoativa, na superioridade "daquele que veio depois". Aqui temos um João
Batista que efetivamente rasteja perante Jesus.
Entretanto, como diz Hugh Schonfield:
Temos conhecimento, através de fontes do próprio cristianismo, de que
havia uma importante seita judaica que rivalizava com os seguidores de
Jesus e afirmava que João Batista é que era o verdadeiro Messias...
Schonfield também comenta "a rivalidade irreconciliável" entre seus
respectivos seguidores, mas acrescenta que, devido à influência de João
sobre Jesus ser bastante conhecida, "eles não podiam desprezar o Batista, e
tiveram que inventar, em vez de enfatizar, seu lugar secundário" .
(Sem entender essa rivalidade, não se pode compreender plenamente o
verdadeiro papel nem de João nem de Jesus. Deixando de lado as amplas
implicações para a própria teologia cristã, a recusa em reconhecer a
hostilidade entre Jesus e João torna a mais radical das novas teorias
totalmente insatisfatória. Por exemplo, como vimos, Ahmed Osman
argumenta que Jesus foi inventado pelos seguidores de João Batista a fim de
que se cumprisse sua profecia sobre aquele que estava por vir. De modo
semelhante, Knight e Lomas, no livro The Hiram Key, chegam ao ponto de
afirmar que Jesus e João eram coMessias trabalhando em conjunto, uma
teoria que implica uma íntima relação entre os dois pregadores; nada
poderia estar mais longe da verdade.)
A conclusão mais lógica é a de que Jesus começou como discípulo de João
e se separou dele mais tarde para formar seu próprio grupo. (É bastante
provável que tenha sido batizado por João, mas como um acólito, não como
o Filho de Deus!) Os Evangelhos registram que Jesus recrutou seus
primeiros discípulos entre os seguidores de João.
De fato, o grande estudioso inglês da Bíblia C. H. Dodds traduz a frase do
Evangelho de João, "aquele que vem depois de mim" (ho opiso mou
erchomenos), como "aquele que me segue". Isso poderia significar "discípulo",
dado que a ambigüidade é a mesma do inglês. Dodds achava que era
exatamente isso.
A crítica mais recente à Bíblia assinala que João jamais fez sua famosa
proclamação sobre a superioridade de Jesus, nem mesmo insinuou que este
era o Messias. Essa idéia é corroborada por vários fatos.
Os Evangelhos (de modo bastante ingênuo) registram que João, quando
estava encarcerado, questionou a autenticidade do messiado de Jesus. A
sugestão é de que ele duvidava de sua própria afirmação anterior de que
Jesus era o Messias, mas isso poderia também ser um outro exemplo em
que os autores dos Evangelhos precisaram adaptar um episódio para seus
próprios propósitos.Teria João inequivocamente negado que Jesus era o
Messias talvez chegando mesmo a denunciá-lo?
Do ponto de vista da mensagem cristã as implicações relativas ao episódio
são, ou deveriam ser, extremamente perturbadoras. Pois se por um lado os
cristãos aceitam que João fora divinamente inspirado para reconhecer Jesus
como o Messias, por outro o questionamento de João na prisão indica, no
mínimo, que ele estava em dúvida. O cárcere certamente lhe dera muito
tempo para pensar, ou talvez a divina inspiração o tivesse abandonado.
Como veremos, os últimos seguidores de João, que Paulo encontrou em
Éfeso e Corinto quando fazia seu trabalho missionário, nada sabiam sobre a
suposta declaração de João proclamando que alguém maior viria depois
dele.
Uma das evidências mais fortes a indicar que o Batista nunca declarou que
Jesus era o Messias esperado é a de que os próprios discípulos de Jesus não
o reconheciam como tal, pelo menos no começo de seu ministério. Ele era
seu líder e professor, mas não há qualquer sugestão de que o seguiram de
início porque acreditavam que ele era o tão esperado Messias dos judeus. A
identificação de Jesus como o Messias parece ter se espalhado pouco a
pouco entre os discípulos, à medida que seu ministério se desenvolvia. No
entanto, Jesus deu início à sua missão após ter sido batizado por João: então
por que, se João realmente havia anunciado Jesus como o Messias, ninguém
mais na época sabia disso? (E os próprios Evangelhos deixam claro que as
pessoas o seguiam não porque ele fosse o Messias, mas por alguma outra
razão.)
E há uma outra consideração que nos faz pensar bastante. Quando o
movimento de Jesus começou a causar impacto, Herodes Antipas ficou
temeroso e, aparentemente, começou a pensar que Jesus era João
ressurrecto ou reencarnado (Marcos 6:14):
Ora, o rei Herodes ouviu falar dele (pois seu nome era ouvido em toda a
parte) e dizia: João Batista ressuscitou dentre os mortos, e por isso os
prodígios operam-se nele.
Essas palavras sempre foram motivo de confusão. O que Herodes quis dizer
com elas: que Jesus era de algum modo João reencarnado? No entanto,
dificilmente poderia ser isso, pois João e Jesus viveram na mesma época.
Antes de examinarmos essa história com mais profundidade, assinalemos
algumas implicações de relativa importância das palavras de Herodes.
A primeira é que ele não sabia que João vaticinara que "um maior do que
ele" viria depois, senão teria chegado à óbvia conclusão de que Jesus era
essa pessoa. Se a vinda do Messias fosse uma parte evidente dos
ensinamentos de João, como afirmam os Evangelhos, então Herodes deveria
estar ciente disso.
A segunda é que Herodes disse que "João... ressuscitou... e por isso os
prodígios operam-se nele Jesus]..." Isso sugere que João gozava de uma
reputação própria como fazedor de milagres, o que, entretanto, é
absolutamente negado nos Evangelhos - de fato, o Evangelho de João (10:4)
é tão enfático a esse respeito que se chega a suspeitar de um encobrimento.
Teria João transformado água em vinho, alimentado milhares com um
punhado de comida, curado doentes, até mesmo ressuscitado mortos?
Talvez sim. Mas uma coisa é certa: o Novo Testamento, sendo a
propaganda do movimento de Jesus, não é o lugar onde podemos esperar
encontrar tais afirmações.
Uma explicação possível das confusas palavras de Herodes sobre João
Batista ter renascido através de Jesus é, ao menos superficialmente,
impensável, tanto literal quanto metaforicamente. Contudo, lembremos que
estamos lidando com uma cultura e uma época tão diferentes da nossa que,
em muitos aspectos, parecia tratar-se de um outro mundo. Como observa
Carl Kraeling, em 1940, as palavras de Herodes só podem fazer sentido se
entendidas como refletindo idéias ocultas que eram correntes no mundo
greco-romano da época de Jesus. Essa sugestão foi acatada e ampliada por
Morton Smith em seu livro Jesus the Magician, de 1978. Como vimos,
Smith concluiu que a resposta para o enigma da popularidade de Jesus
reside em suas demonstrações de magia egípcia.
Naquela época acreditava-se que, para realizar magia, um feiticeiro
necessitava ter poder sobre um demônio ou espírito. Os Evangelhos aludem
a isso em uma passagem em que Jesus faz referência à acusação feita contra
João de que "ele tinha um demônio". Não é, como à primeira vista parece,
uma referência à possessão por um espírito maligno, mas sim que João tinha
um demônio sob seu poder.
A hipótese de Kraeling, dentro desse contexto, era de que as palavras de
Herodes Antipas podiam ser entendidas como uma referência a esse
conceito, porque não eram apenas os demônios que podiam ser
"escravizados" dessa maneira, mas também o espírito de um ser humano,
especialmente um que fora assassinado. Um espírito ou alma assim
escravizado poderia, acreditava-se, realizar as tarefas que seu mestre
comandasse. (Tal acusação foi algum tempo depois lançada contra Simão
Mago, que, segundo diziam, "escravizara” o espírito de um menino
assassinado.)
Kraeling escreve:
Os detratores de João utilizaram-se da ocasião de sua morte para espalhar a
idéia de que seu espírito desencarnado estava a serviço de Jesus, como
instrumento para a realização de trabalhos de magia negra - um
reconhecimento nada pequeno do poder de João.
Com essa explicação em mente, Morton Smith assim traduziu as palavras
de Herodes:
João Batista ressuscitara dentre os mortos [através da necromancia de
Jesus; Jesus agora o tinha em seu poder]. E por isso [posto que Jesus-João
pode controlá-los] prodígios [inferiores] são realizados [seus milagres] por
ele [i.e. sob suas ordens].
Em apoio a essa idéia, Smith cita um texto de magia presente num papiro
que hoje se encontra em Paris. A invocação - significativamente, talvez - é
dirigida ao deus Hélios:
Dê-me autoridade sobre o espírito desse homem assassinado, de cujo corpo
possuo uma parte...
De especial interesse nesse contexto são os dons que essa operação mágica
pretende conferir ao mago: a habilidade de curar e predizer se uma pessoa
doente viverá ou morrerá, e a promessa de que "você será venerado como
um deus..."
Um outro episódio serve para ressaltar o fato de que a popularidade de João
era, para dizer o mínimo, maior do que a de Jesus. Tal episódio ocorre
próximo do final do ministério de Jesus, quando este está pregando para as
multidões no Templo de Jerusalém. Os "príncipes dos sacerdotes e os anciãos"
confrontam-no abertamente, propondo questões traiçoeiras na
esperança de pegá-lo em contradição - questões que Jesus contorna com a
presença de espírito típica de um político experiente. Eles exigem que Jesus
lhes diga quem lhe deu autoridade para falar como fala. Jesus responde com
outra pergunta: "Donde era o batismo de João? Do céu ou dos homens?"
A pergunta faz seus oponentes ponderarem:
E eles refletiam consigo, dizendo: Se lhe dissermos, do céu, ele dirá: Por
que razão, pois, não crestes nele?
E se lhe dissermos, dos homens, tememos o povo. Porque todos tinham
João como um profeta.
Em face desse beco sem saída, declinaram de responder.
O que é significativo nessa disputa é que Jesus usou o temor dos sacerdotes
à popularidade de João contra eles mesmos, em vez de se apoiar na sua
própria. Como vimos, Josefo destacou a influência e o apoio que João tinha
entre as pessoas: o Batista não era um pregador itinerante como outro
qualquer, mas um líder de grande carisma e poder que, por alguma razão,
arrebanhou um grande número de seguidores. De fato, de acordo com
Josefo, tanto os judeus quanto os gentios "ficavam extremamente
entusiasmados ao ouvir seus ensinamentos".
Um curioso episódio, relatado no Evangelho apócrifo chamado Livro de
Tiago ou Proto-evangelho, indica que João era importante por si só. Esse
Evangelho foi compilado muito tempo depois e inclui vários relatos da
infância de Jesus que ninguém hoje em dia leva a sério, mas que incorpora
materiais de diversas fontes e, portanto, pode conter pelo menos algumas
pistas sobre tradições bem conhecidas. É com certeza difícil entender como
alguém familiarizado com os Evangelhos canônicos poderia tê-lo inventado.
No relato da infância de Jesus e João - após a conhecida história do
nascimento de Jesus e da visita dos Sábios - Herodes ordena o Massacre dos
Inocentes. À primeira vista isso é idêntico à versão presente no Novo
Testamento. Entretanto, logo toma um rumo radicalmente diferente.
A reação de Maria, ao ficar sabendo do massacre, é simplesmente enrolar o
bebê com panos e colocá-lo em uma manjedoura, provavelmente para
escondê-lo dos soldados. No entanto, parece que João é que é o objeto da
busca. Lemos ali que Herodes envia seus homens para interrogar Zacarias,
pai de João, e eles voltam dizendo que ele não sabe onde estão sua mulher e
filho:
Herodes ficou irado e disse: o filho dele será o rei de Israel.
Nessa versão, é Isabel que foge com João para o interior do país. Existem
claros indícios aqui de uma outra "Sagrada Família", talvez até mesmo
rival.
Como vimos, João era muito popular e contava com grande número de
seguidores, os quais, como no movimento de Jesus, consistiam em um
círculo de discípulos que o acompanhavam onde quer que ele fosse e de
pessoas que se aproximavam para ouvi-lo falar. Também como no caso de
Jesus, após a morte de João seus discípulos começaram a escrever relatos
sobre sua vida e seus ensinamentos no que seriam efetivamente as escrituras
de João.
Os estudiosos reconhecem que tal corpo de "literatura sobre João" outrora
existiu, mas não sabemos onde está. Possivelmente foi destruído ou mantido
em segredo pelos "hereges". No entanto, parece que de fato continha
material que não correspondia aos relatos do Novo Testamento - do
contrário, de alguma forma teria sido conservado em domínio público.
A descrição de Lucas das concepções "conjuntas" de João e Jesus é
extremamente interessante .Analisando o relato, os estudiosos
estabeleceram, para além de qualquer dúvida, que na verdade se trata de
uma combinação de duas histórias separadas, uma contando a concepção de
Jesus e a outra a de João, que são (de acordo com Kraeling) "unificadas por
materiais que basicamente não tinham qualquer relação entre si". Em outras
palavras, Lucas (ou a fonte que ele utilizou) pegou duas histórias distintas e
tentou juntá-las utilizando o recurso literário do encontro das duas mulheres
grávidas, Maria e Isabel. A conclusão lógica é que a história da infância de
João era originariamente independente dos Evangelhos e provavelmente
anterior ao nascimento de Jesus. Isso contém importantes implicações. Uma
é que já havia histórias falando de João. A outra é que a versão de Lucas
para a Natividade foi evocada especificamente para se "sobrepor" à de João,
que já era conhecida. Afinal, o "milagre" do nascimento de João reside no
simples fato de seus pais serem idosos, enquanto Lucas faz de Jesus o
rebento de uma mãe virgem. E o único motivo que Lucas teria tido para
narrar tal história era que os seguidores de João ainda existiam e
rivalizavam com os de Jesus.
Essa hipótese se apóia em um fato que foi estabelecido pelos estudiosos,
mas permanece desconhecido para a maioria dos cristãos. O adorado
"cântico" de Maria, o Magnificat, era de fato de Isabel e referia-se ao filho
desta. As palavras associam a mulher com a personagem Ana do Antigo
Testamento, que gerou pela primeira vez em idade já avançada, e portanto
está mais de acordo com a condição de Isabel. De fato, alguns dos primeiros
manuscritos do Novo Testamento declaram que o cântico era de Isabel, e o
patriarca da Igreja Irineu (escrevendo por volta de 170) também afirma que
ela, e não Maria, proferiu as palavras.
Da mesma forma, na cerimônia da circuncisão de João, Zacarias declamou
uma "profecia", ou hino, conhecida como Benedictus, em louvor a seu filho
recém-nascido. Obviamente isso deve ter sido parte da história original do
nascimento de "João Batista". Tanto o Magnificat quanto o Benedictus
parecem ter sido hinos dedicados a João e que foram incorporados ao
"Evangelho de João" , adulterado então por Lucas a fim de torná-lo mais
aceitável para os seguidores de Jesus. Isso indica que as pessoas estavam
não só escrevendo relatos da vida de João como também fazendo elegias a
ele em versos e canções. Contudo, teriam essas tradições relativas a João
realmente fornecido aos autores dos Evangelhos o material no qual
basearam seus relatos sobre Jesus? Como diz Schonfield em seu livro
Essene Odyssey:
O contato com os seguidores de João Batista... familiarizaram os cristãos
com as histórias da natividade de João, nas quais ele figura como o jovem
Messias das tradições sacerdotais, nascido em Belém.
Além disso, os antigos textos da Igreja conhecidos como Considerações
Clementinas afirmam que alguns dos discípulos de João acreditavam que
ele era o Messias. E Geza Vermes acha que alguns episódios contidos nos
Evangelhos e nos Atos dão indicações de que os seguidores de João
acreditavam que ele era o Messias.
O conhecimento de que existiu essa "literatura sobre João" responde a
muitas questões sobre o Quarto Evangelho, que se atribui ao discípulo João.
Como vimos, existem muitas contradições internas nesse Evangelho.
Embora seja o único que se baseia no relato de uma testemunha ocular -
afirmação corroborada pelos detalhes circunstanciais encontrados no
próprio texto -, ele contém evidentes elementos gnósticos que não condizem
nem com os outros Evangelhos, nem com o tom prosaico geral do restante
do próprio livro. Isso é particularmente perceptível no "prólogo" relativo a
Deus e ao Verbo. O Evangelho de João é o mais anti-Batista de todos quatro
e, no entanto, é o único que nos diz explicitamente que os primeiros
discípulos de Jesus vieram das fileiras do Batista, incluindo o suposto autor
e testemunha, o próprio "discípulo amado".
Essas contradições, entretanto, não invalidam necessariamente os
Evangelhos. Está claro que o autor compilou os textos de diversas fontes, as
quais ele reuniu e interpretou de acordo com suas próprias crenças sobre
Jesus, reescrevendo o material onde achou que era necessário. Quem quer
que seja o autor, o Evangelho parece conter o testemunho em primeira mão
do "discípulo amado". No entanto, muitos dos mais influentes estudiosos do
Novo Testamento pensam que o autor também utilizou alguns dos textos
escritos por seguidores do Batista, os quais, de acordo com a autoridade em
estudos sobre o Oriente Médio, Edwin Yamauchi, "o Quarto Evangelista...
desmistificou e cristianizou".
O material do Batista consiste principalmente no prólogo e no que se
denominam "discursos da revelação" entre Jesus e seus discípulos. O
alemão Rudolf Bultmann, grande estudioso da Bíblia, argumenta que estes
... Se originaram, segundo se acreditava, de documentos dos seguidores de
João Batista que exaltavam João e lhe atribuíam o papel de Redentor
enviado do mundo da Luz. Portanto, uma parte considerável do Evangelho
de João não é originariamente cristã, mas resultado da transformação da
tradição do Batista.
Esses elementos do Evangelho de João são os mais gnósticos e, portanto,
foram os que mais causaram problemas aos historiadores que o estudaram.
Supõe-se com freqüência que, já que esses elementos não se coadunam com
os outros Evangelhos e o resto do Novo Testamento, o livro deve ter sido
escrito muito tempo depois que os outros. Entretanto, reconhecer que
vieram de outra fonte que não os seguidores de Jesus modifica totalmente o
quadro, e muitos comentadores associam o Quarto Evangelho a uma "fonte
gnóstica pré-cristã", que foi adaptada pelo autor. Essa fonte parece ser João
Batista e seus seguidores, que, ao que tudo indica, eram gnósticos.
(Essas descobertas podem fornecer uma solução para a controvérsia sobre a
data do Evangelho de João. Como vimos, a visão comum é a de que, dado o
material não judaico e gnóstico do Evangelho, ele tenha sido escrito após os
Evangelhos Sinópticos. Entretanto, se Jesus não era judeu, e grande parte do
material deriva dos seguidores de João Batista - que, como veremos, eram
gnósticos -, então é bastante possível que esse Evangelho seja
contemporâneo, ou até mesmo anterior, aos outros.)
Não só João reuniu um grande número de devotados seguidores durante seu
tempo de vida, como eles continuaram a crescer após sua morte de um
modo que é curiosamente paralelo ao crescimento do cristianismo. Existem
evidências de que o movimento de João iniciara uma Igreja própria que não
se confinou à Palestina. Em seu livro Jesus, de 1992, A. N. Wilson escreve:
Se a religião de João Batista (e sabemos que houve uma) tivesse se
tornado dominante no Mediterrâneo, em vez da religião de Jesus,
provavelmente saberíamos mais do que sabemos sobre essa cativante figura.
Seu culto sobreviveu até pelo menos meados dos anos 50, como o autor dos
Atos deixa escapar. . . Em Éfeso, pensavam que "O Caminho" (como era
conhecida a religião desses primeiros crentes) significava seguir o "batismo
de João". Tivesse Paulo tido uma personalidade mais fraca... ou se nunca
tivesse escrito as epístolas, o "batismo de João" bem poderia ter sido a
religião que atrairia a imaginação do mundo antigo, em lugar do batismo de
Cristo... O culto poderia até mesmo ter se desenvolvido a ponto de os então
joanitas, ou batistas, acreditarem que... João era Divino...
Esse acidente da história, entretanto, não aconteceu.
Portanto, até mesmo o Novo Testamento descreve a existência da Igreja de
João além das fronteiras de Israel. Bamber Gascoigne escreve:
Um grupo de pessoas que Paulo encontrou em Éfeso oferece um intrigante
vislumbre do potencial de desenvolvimento da religião - que Paulo
rapidamente cortou pela raiz.
Esse grupo de pessoas era, é claro, a Igreja de João. Sua própria existência
como entidade distinta após a morte de Jesus é um argumento de que João
jamais pregou a vinda de "um maior" depois dele, ou de que, se o tivesse
feito, essa pessoa não poderia ser Jesus. Parece que quando os joanitas
encontraram Paulo não tinham a menor idéia de tal profecia. E eles não
eram um culto insignificante. Foram descritos como "um séquito
internacional" que se estendia da Ásia Menor até Alexandria. Os Atos
registram que a religião de João fora levada até Éfeso por um alexandrino
chamando Apolo - aliás é a única referência a Alexandria em todo o Novo
Testamento.
Então João Batista tinha um outro grupo forte de seguidores, que o
perpetuaram como uma verdadeira igreja. Entretanto, supõe-se - como nos
comentários acima de A. N. Wilson - que esta foi absorvida pela Igreja
Cristã logo cedo. Com certeza, algumas de suas comunidades, como aquelas
encontradas por Paulo, foram suplantadas pela própria versão deste do
movimento de Jesus. Mas há uma forte evidência de que a Igreja de João
realmente sobreviveu.
Esse corpo de evidências, entretanto, enfatiza o papel de um personagem
que, à primeira vista, pode parecer completamente deslocado nessa história,
alguém que foi ultrajado ao longo da história cristã como o "pai de todas as
heresias" e adepto da magia negra do pior tipo. Seu nome passou até a
denominar um pecado, o de tentar comprar o Espírito Santo: simonia.
Estamos falando, é claro, de Simão Mago.
Ao contrário das duas outras figuras principais que estivemos discutindo -
Maria Madalena e João Batista -, Simão Mago não foi marginalizado pelos
cronistas do cristianismo; na verdade foi-lhe atribuído um papel quase
proeminente nos primeiros textos do cristianismo. Entretanto, ainda é
tachado de maléfico, como o homem que tentou imitar Jesus e que, em
determinado momento, chegou a se infiltrar na embrionária Igreja a fim de
conhecer seus segredos - até, é claro, ser desmascarado pelos Apóstolos.
Algumas vezes conhecido como "o primeiro herege", Simão Mago é
considerado alguém irredimível. Uma indicação dos motivos disso está no
fato de que os primeiros padres da igreja consideravam a palavra gnóstico
como sinônimo de "herege", e Simão era gnóstico (embora não tenha sido,
como acreditavam, o fundador do Gnosticismo).
Simão faz apenas uma breve aparição no Novo Testamento, nos Atos dos
Apóstolos (8:9-24). Significativamente, ele era um samaritano que, de
acordo com os Atos, utilizava a magia para "enfeitiçar" o povo de Samaria.
Quando o apóstolo Felipe lá pregou, Simão ficou tão impressionado que
pediu para ser batizado. No entanto, esse ato foi considerado como apenas
um artifício para que pudesse obter para si o poder do Espírito Santo. Ele
então ofereceu dinheiro a Pedro e João, para conseguir aquele poder, e foi
severamente repreendido. Temendo por sua alma, Simão se arrependeu e
pediu-lhes que orassem por ele.
Entretanto, os primeiros padres da igreja sabiam muito mais sobre esse
personagem, e seus relatos contradizem o simples conto moralista do livro
dos Atos. Ele nascera na vila de Gita e era reputado por suas habilidades de
mago (daí seu codinome Mago). Durante o reinado de Cláudio (41-54, isto
é, dez anos depois da crucificação) ele partiu para Roma, onde foi honrado
como um deus e até mesmo se erigiu uma estátua em sua homenagem. Os
samaritanos já o haviam reconhecido como um deus.
Simão Mago viajava com uma mulher chamada Helena, uma ex-prostituta
da cidade fenícia de Tiro, a quem ele chamava de Primeiro Pensamento
(Ennoia), a Mãe de Tudo. Isso tinha origem em suas crenças gnósticas: ele
ensinava o "primeiro pensamento" de Deus - exatamente como a idéia
judaica da Sabedoria/Sofia discutida anteriormente - havia sido feminino, e
que fora ela quem criara os anjos e outros semi-deuses, que são os deuses
deste mundo. Eles criaram a Terra sob as instruções dela, mas se rebelaram
e a aprisionaram na matéria, no mundo material. Ela ficou presa em uma
série de corpos femininos (incluindo o de Helena de Tróia), cada um dos
quais sofrendo insuportáveis humilhações, terminando por fim como uma
prostituta em um porto de Tiro. Mas nem tudo estava perdido, porque Deus
também estava encarnado, na forma de Simão. Ele a procurou e a resgatou.
O conceito de um sistema cosmológico que compreendia uma série de
mundos e planos superiores e inferiores é bastante conhecido hoje em dia.
Embora os detalhes precisos variem, é uma crença gnóstica comum que
chegou até os cátaros no período medieval e permeia a cosmologia
hermética, que é a base do ocultismo ocidental, passando pela alquimia até
o hermetismo da Renascença. Existem também espantosos e exatos
paralelos com outros sistemas que já discutimos. O mais significativo é a
semelhança com o gnosticismo copta do Pistis Sophia, no qual Jesus sai em
busca da aprisionada Sofia, uma figura explicitamente vinculada nesse texto
a Maria Madalena. (Simão também chamava Helena de sua "ovelha
desgarrada".)
A personificação da Sabedoria como uma mulher - e uma meretriz - já é
algo com que estamos familiarizados nesta investigação e que a atravessa
por inteiro. No caso de Simão, essa incorporação era literal, na pessoa de
Helena.
Como escreve Hugh Schonfield:
...os simonianos veneravam Helena como Atenas (Deusa da Sabedoria),
que por sua vez era identificada no Egito com Ísis.
Scholfield também associa Helena e Sofia com Astarte.
Karl Luckert também remonta até Ísis o conceito de Simão, da Ennoia
encarnada em Helena. Geoffrey Ashe concorda, acrescentando: "[Helena] é
colocada de volta no caminho da glória como Kyria ou rainha celestial".
Uma outra fonte apócrifa, datando de cerca de 185, diz que Helena é "negra
como uma etíope" e dança com correntes, acrescentando: "Todo o poder de
Simão e de seu Deus está nesta mulher que dança".
Irineu escreve que os sacerdotes iniciados por Simão "viviam na
imoralidade", embora, infelizmente, ele não se aprofunde muito nisso. Mas
eles com certeza praticavam rituais ligados ao sexo, como revela Epifânio
em sua obra monumental Against Heresy:
E ele prescrevia os mistérios da obscenidade e... as emissões dos corpos,
emissionum vironum, feminarum menstruorum, e que eles deveriam colher
os mistérios na mais asquerosa das coletas.
(G.R.S. Mead, como bom vitoriano, deixou essa pudica tradução com as
frases em latim, mas parece que a seita de Simão utilizava a magia sexual,
envolvendo sêmen e sangue menstrual.)
Os padres da igreja ficaram profundamente temerosos de Simão Mago e sua
influência. Parece que ele representou uma séria ameaça para os primórdios
da Igreja - o que é um tanto estranho, até que se perceba o quanto Simão
tinha em comum com Jesus.
Os padres fizeram muito esforço para mostrar que, embora Simão e Jesus
dissessem e fizessem muitas coisas semelhantes, incluindo milagres, a fonte
de seu poder era muito diferente. Simão agia através de feitiçaria, enquanto
Jesus agia pelo poder do Espírito Santo. Com efeito, Simão era uma paródia
satânica de Jesus. Encontramos, por exemplo, Hipólito afirmando
asperamente sobre Simão: "Ele não era Cristo"
Epifânio revela mais ao escrever:
Desde a época de Cristo até a nossa, a primeira heresia foi a de Simão, o
mago, e embora não fosse corretamente e distintivamente uma heresia de
nome cristão, no entanto provocou grande devastação pela corrupção que
gerou entre os cristãos.
Além disso, de acordo com Hipólito:
... Ao comprar a liberdade de Helena, ele assim ofereceu salvação aos
homens através do conhecimento peculiar de si mesmo.
Um outro relato credita a Simão a capacidade de realizar milagres, inclusive
transformar pedras em pão. (Isto nos remete à Tentação de Jesus, quando é
oferecido a ele o mesmo poder, mas ele recusa. Entretanto, nos é dito mais
tarde que Jesus alimentou cinco mil pessoas com apenas cinco pães e dois
peixes, o que é praticamente a mesma coisa.)
Jerônimo extrai a seguinte citação de uma das obras de Simão:
Eu sou a palavra de Deus, eu sou o glorioso, eu sou o Consolador, o
Todo-Poderoso. Eu sou o próprio Deus.
Em outras palavras, Simão se auto-proclamava divino e prometia a salvação
a seus seguidores.
Nos Atos Apócrifos de Pedro e Paulo, Simão Mago e Pedro se engajam em
uma disputa para ver quem conseguiria trazer um defunto de volta à vida.
Simão apenas consegue reanimar a cabeça, enquanto Pedro realiza o truque
perfeitamente. Existem muitos outros relatos nos textos apócrifos sobre
batalhas mágicas entre Simão Mago e Simão Pedro, todas terminando com
o triunfo do cristão. O que elas demonstram, entretanto, é que o primeiro
era tão influente que histórias tinham de ser inventadas com o intuito de
conter seu poder sobre as massas.
O mago não era um simples feiticeiro itinerante, mas um filósofo que
escrevia suas próprias idéias. Desnecessário dizer que os originais se
perderam, mas os padres da Igreja incluíram em suas obras algumas
extensas citações retiradas desses textos, com o propósito de cabalmente
condená-las. Esses fragmentos, contudo, revelam claramente o gnosticismo
de Simão e a ênfase na existência de duas forças opostas porém
complementares - uma masculina e outra feminina. Por exemplo, esta é uma
citação da sua obra Great Revelation:
Dos Eões universais saem dois ramos... um manifesta-se de cima, é o
Grande Poder, a Mente Universal dirigindo todas as coisas, o masculino, e
outra vinda de baixo, o Grande Pensamento, feminino, produzindo todas as
coisas. Acasalando-se um com o outro, eles se unem e manifestam na
Distância Média... aí está o Pai...
É Ele quem manteve, mantém e manterá o poder feminino-masculino no
preexistente Poder Ilimitado...
Aqui podemos ver reminiscências do hermafrodita alquímico, do andrógino
simbólico que tanto fascinava Leonardo. Mas de onde vinham as idéias de
Simão Mago?
Karl Luckert remonta as "raízes ideológicas" dos ensinamentos de Simão às
religiões do antigo Egito, e, ao que parece, eles refletem, e talvez ainda
perpetuem em forma adaptada, aqueles cultos. Embora, como vimos, as
escolas de Ísis/Osíris enfatizassem a natureza oposta e igual das duas deidades,
a feminina e a masculina, algumas vezes se considerava que ambas
se haviam mesclado no caráter e no corpo de Ísis. Esta ocasionalmente é
retratada com barba, e atribui-se a ela a seguinte frase: "Embora seja
mulher, tornei-me homem..."
Simão Mago e Jesus eram, no que tange aos primórdios da Igreja,
perigosamente parecidos em seus ensinamentos, razão por que Simão foi
acusado de ter tentado roubar o conhecimento dos cristãos. Essa é uma
admissão tácita de que seus próprios ensinamentos eram, de fato,
compatíveis com os de Jesus, talvez até mesmo parte do mesmo
movimento. As implicações relacionadas a isso são perturbadoras. Seriam
os rituais sexuais praticados por Simão e Helena, por exemplo, também
praticados por Jesus e Madalena? De acordo com Epifânio, os gnósticos
tinham um livro chamado As Grandes Questões de Maria, que pretendia
conter os ensinamentos secretos do movimento de Jesus, os quais tomavam
a forma de cerimônias "obscenas".
Pode-se ficar tentado a descartar tais rumores como sendo apenas fofocas
escandalosas e grosseiras, mas, como vimos, existem evidências de que
Madalena era uma iniciadora sexual na tradição da prostituta do templo,
cuja função era conceder aos homens a dádiva da horasis: iluminação
espiritual através do ato sexual.
John Romer, em seu livro Testament, explicita o paralelo:
Helena, a Meretriz, como os cristãos a chamavam, era a Maria Madalena
de Simão Mago.
Então, novamente, há uma outra ligação: a da provável origem egípcia. Karl
Luckert fala de Simão:
Como "pai de todas as heresias" ele deve agora ser estudado não apenas
como um oponente, mas também como um notável concorrente de Cristo no
início da igreja cristã, possivelmente até como um aliado potencial.. .
A partir do fato de terem uma herança egípcia comum, pode-se deduzir a
força da ameaça de Simão Mago. O perigo aumentava com a possibilidade
de que ele pudesse ser confundido com o próprio Cristo...
E Luckert vê um estreito paralelo no que ele acredita ser a real missão
desses dois homens. Ele reconhece a evidente dicotomia na pregação de
Jesus como uma mensagem essencialmente egípcia para um público judeu,
mas percebe a bastante próxima conexão entre a teologia hebraica original e
a do Egito. Ele diz, de Simão:
[Ele] ... Via como sua missão consertar... o que devia estar errado; mais
precisamente, a alienação da dimensão feminina de Tefnut-Mahet-Nut-Ísis
da divindade masculina.
Esse, é claro, é precisamente o motivo hipotético que apresentamos para a
missão de Jesus na Judéia e que é atribuído a ele no Levitikon. Luckert
conclui que Jesus se sobrepôs a Simão Mago apenas por ter chegado ao
extremo de incluir sua própria morte no quadro geral. A ênfase modifica-se
radicalmente, entretanto, quando se leva em consideração a idéia de que a
crucificação pode não ter terminado com a morte de Jesus.
Além dos paralelos com Jesus, há um outro fato inquietante, e para nós
revelador, sobre Simão: ele era discípulo de João Batista. E não só isso, ele
fora indicado por João para ser seu sucessor (embora, pelas razões dadas
abaixo, não devesse ser uma sucessão direta).
As implicações disso são estarrecedoras, pois Simão já era conhecido como
feiticeiro e mago desde antes da morte de João. Dificilmente se pode dizer
que o discípulo pôs suas manguinhas de fora depois que o guru puritano foi
tirado de cena. João deve ter conhecido e aprovado os ensinamentos de
Simão. E se Simão era membro do círculo interno de João, ele aprendeu sua
magia com o próprio Batista, bem como outros discípulos em posição
similar. Assim como Jesus...
O que se segue foi extraído das Considerações Clementinas, século III:
Foi em Alexandria que Simão aperfeiçoou seus estudos sobre magia, sendo
adepto de João, um Hemerobatista ["Dia-Batista": pouco se sabe sobre esse
termo], através de quem ele veio a envolver-se com doutrinas religiosas.
João era o precursor de Jesus...
... De todos os discípulos de João, Simão era o favorito, mas quando da
morte de seu mestre ele estava ausente, em Alexandria, e então Dositheus,
um condiscípulo, foi escolhido como chefe da escola.
Esse relato também adentra em razões numerológicas confusas para
explicar por que João tinha trinta discípulos - provavelmente apenas no
círculo interno -, embora fossem na verdade vinte e nove e meio porque um
deles era uma mulher que não contava como pessoa inteira. Seu nome era
Helena... Isso é interessante porque sugere, nesse contexto, que se tratava da
Helena de Simão Mago, e que ela, também, fora discípula de João. Tudo
isso nos deixa com a inquietante sensação de que o Batista, que sempre fora
tido como um asceta puritano, um tipo de monge, era de fato
completamente diferente.
Quando Simão retornou de Alexandria, Dositheus entregou-lhe a liderança
da Igreja de João, não sem lutar porém. Mais uma vez, a cidade egípcia de
Alexandria é importante nessa história, provavelmente porque foi lá que os
principais protagonistas aprenderam sua magia.
Dositheus também tinha uma seita com seu nome, que sobreviveu até o
século VI. Orígenes registra:
... um certo Dositheus dos samaritanos chegou dizendo que era o Cristo
profetizado: desde aquele dia até hoje existem dositeanos, que escreveram
as palavras de Dositheus e também alguns relatos sobre ele, de modo que
ele não conheceu a morte, mas ainda vive.
Os seguidores de Simão continuaram a existir até o século III. Seu sucessor
imediato foi um certo Menandro.
Os dositeanos "veneravam João Batista" como o "mais justo dos professores...
dos Últimos Dias". Contudo, tanto a seita de Dositheus quanto a de
Simão foram erradicadas pela Igreja.
A implicação óbvia é de que João Batista não era o pregador ocasional de
uma plebe ignara: ele era o cabeça de uma organização, sediada em Alexandria.
Como vimos, os primeiros prosélitos do movimento de Jesus
surpreenderam-se ao descobrir uma "Igreja de João" em Éfeso, lá erigida
por Apolo de Alexandria. Essa metrópole foi também a base de Simão
Mago - o sucessor oficial de João e um conhecido rival de Jesus -, que
também era samaritano. Curiosamente, os cristãos veneraram a suposta
tumba do Batista em Samaria até que fosse destruída no século IV pelo
imperador Juliano, o que no mínimo sugere uma antiga tradição ligando
João Batista a essa terra. (Talvez a parábola do Bom Samaritano fosse na
verdade uma astuta tentativa de apaziguar os discípulos de João ou de
Simão Mago.)
Entretanto, não há qualquer indicação de que Simão era judeu, nem mesmo
originário da Samaria. Mesmo nos mais virulentos ataques a ele dirigidos,
os padres da Igreja nunca o atacaram por ser judeu, e dada a violência com
que os judeus foram acusados pelo assassinato do Filho de Deus, através
dos séculos, isso é particularmente interessante. Como vimos, João pregou a
não-judeus e atacou o culto do Templo de Jerusalém, a própria fundação da
religião judaica. Ele tinha, com toda a probabilidade, fortes ligações com
Alexandria, e, o que é ainda mais significativo, seu sucessor também era um
gentio. Tudo isso sugere que o próprio João não era judeu e que estava
familiarizado com a cultura egípcia.
É particularmente estranho que os primeiros padres da Igreja, entre eles
Irineu, tenham rastreado as origens das seitas "heréticas" justamente até
João Batista. Afinal, os Evangelhos o têm como alguém que inventou o
batismo e que viveu, a bem dizer, apenas para preparar o caminho para
Jesus. Mas saberiam eles a verdade sobre João? Teriam percebido que ele
não era o precursor mas um encarniçado rival, venerado ele próprio como o
Messias? Teriam reconhecido o fato aterrador de que João não era, de modo
algum, um cristão?
Os autores dos Evangelhos com efeito tiveram sua vingança contra João.
Eles o reescreveram e, no processo, "o subjugaram" e reposicionaram, de
modo que aquele que um dia fora rival - talvez até inimigo - de Jesus agora
é visto como alguém que se prostrou em reverência à sua divindade. Eles
eliminaram os verdadeiros motivos, palavras e ações de João e os
substituíram por outros que se encaixavam na imagem que deliberadamente
criaram de Jesus e seu movimento.
Como propaganda, esse artifício foi extremamente bem-sucedido, embora
parte do sucesso se deva à tendência inicial da Igreja em responder a
qualquer questão" herética" com torturas e fogueiras. A história cristã que
em confiança aceitamos hoje é resultado do antigo reinado de terror da
Igreja, bem como da propaganda dos Evangelhos.
No entanto, longe da maligna influência da Igreja estabelecida, alguns dos
seguidores de João fielmente o mantiveram em sua memória como o
"verdadeiro Messias" vivo. E eles existem até hoje.