Recentemente vem ocorrendo um grande resgate da cultura Viking.
Dezenas de livros, documentários, eventos acadêmicos e descobertas arqueológicas vem demonstrando o valor da Escandinávia para o estudo da formação do Ocidente Medieval e Moderno, bem como a desmitificação de muitos estereótipos e fantasias.[1] Dentre todas as áreas de investigação algumas das mais promissoras são os estudos de mitologia e religião pré-cristã, extremamente importantes para se entender o posterior processo de estruturação da mentalidade religiosa na Europa.
Uma das mais famosas pesquisadoras de mitologia germânica é a inglesa Hilda Davidson, autora do clássico Gods and Myths of Northern Europe, originalmente publicado em 1964 e que agora recebe a primeira tradução para a língua portuguesa.[2] Esta obra se tornou um marco das investigações na área, tanto por seu caráter sistematizador quanto pela utilização de diversos tipos de fontes, sejam elas históricas (documentos e livros de caráter nobiliárquico/institucionais), literárias, epigráficas, iconográficas e arqueológicas. A obra é dividida em oito capítulos, seguidos de uma interessante relação de referências onomásticas e de um índice remissivo.
No início da obra Davidson discute suas vinculações teóricas e influências metodológicas. Partidária de Mircea Eliade e Georges Dumézil, a autora defendia o estudo do mito para o entendimento da sociedade, da estrutura política e cultural dos povos durante a História. Para ela, somente o estudo comparado do mito poderia fornecer elementos para os pesquisadores contemporâneos conseguirem entender a motivação e o significado simbólico destas narrativas para as sociedades antigas. Assim, Davidson realizou um estudo comparativo do panteão escandinavo com as formas míticas mais antigas, como os germanos do período das migrações, procurando encontrar padrões em comum entre os simbolismos míticos destas sociedades.[3]
No primeiro capítulo, O mundo dos deuses do Norte, a autora discute questões genéricas relacionadas com as fontes sobre a mitologia germânica: a poesia dos skålds na Escandinávia pagã, a questão da influência do referencial cristão na literatura do período pós Era Viking, as estruturas míticas da Edda em Prosa e Poética. Trata-se de uma parte essencial para aqueles que ainda não tem um conhecimento detalhado sobre a temática, tanto quanto uma importante introdução na crítica de fontes manuscritas da Idade Média (heurística medieval).
O segundo capítulo, Os deuses da batalha, dedica-se à interpretação dos cultos religiosos relacionados ao mais importante deus do panteão germano-escandinavo, Óðinn (Odin). Aqui, a autora inclui-se em uma interpretação historiográfica muito importante na medievalística nórdica, a de que os cultos no mundo germânico não eram centralizados, sem organização de uma instituição central, não hierarquizados, sem uma fé comum, variáveis conforme a região e a classe social.[4] O deus Óðinn era o mais cultuado pelos nobres e reis (konungars), sendo por isto mesmo a principal divindade na literatura escandinava, associado com a magia e a guerra. Seu culto estava associado com sacrifícios violentos e personagens marciais como as valkyrjor (valquírias), as virgens condutoras dos guerreiros mortos em batalha para o palácio de Valhöll (Valhala, “salão dos mortos”).
Outro destaque na interpretação da autora é para os berserkir (“os que portam camisas de urso”), guerreiros fanáticos dedicados ao culto de Óðinn, utilizados amplamente como mercenários e guardas de elite na Escandinávia da Era Viking. Este mesmo deus volta a ser interpretado em outro capítulo do livro (Os deuses dos mortos), onde Davidson dedica-se a resgatar aspectos relacionados com funerais e magia, inclusive analisando a figura de Óðinn como xamã.[5] Outra importante questão enfocada pela autora é a disputa entre algumas crenças religiosas nas sociedades nórdicas, especialmente entre os cultos odínicos e os relacionados à fertilidade.[6]
O próximo capítulo, O deus do Trovão, dedica-se ao estudo da mais popular deidade entre os Vikings, Þórr (Thor). Herói relacionado na luta contra as forças do caos e especialmente vinculado com fenômenos atmosféricos e árvores, este deus foi o favorito dos camponeses e agricultores, a exemplo dos colonos da ilha da Islândia.
As divindades relacionadas com a fertilidade são resgatadas no capítulo 4 (Os deuses da paz e da abundância). O deus Freyr, associado com os reis, e sua irmã Freyja são os mais importantes. Freyja recebia importantes cultos mesmo após a introdução do cristianismo na Escandinávia, além de possuir toda uma série de mitos associados com a vida após a morte dos guerreiros. Também Freyja era envolvida com um tipo de magia conhecida como seiðr (“canto”), possivelmente influenciada pelo xamanismo lapônico e que era utilizado para fins proféticos, curativos e de fertilidade ou prosperidade da comunidadeem questão. O seiðr também foi representado nas fontes literárias como uma magia negativa, utilizada para fins maléficos ou destrutivos. Assim, a deusa Freyja possuía dois aspectos principais tanto na religiosidade quanto no pensamento mitológico: relacionada aos princípios de perpetuação das famílias e outro mais terrível, ligado à morte.
Algumas divindades mais obscuras e pouco conhecidas foram analisadas por Hilda Davidson em outro capítulo (Os deuses enigmáticos), como Baldr, Bragi, Íðunn, Mímir, Forseti, e especialmente Loki. Este último deus foi uma figura extremamente complexa, enigmática, sinistra e, às vezes cômica, especialmente citado e representado iconograficamente pelas fontes do período cristão, associado diretamente com Satanás. Por sua vez, o deus Baldr foi interpretado por Davidson a partir de uma perspectiva diferenciada. Não existem evidências de um antigo culto a Baldr antes da Era Viking, o que leva alguns pesquisadores a afirmarem que foi um mito criado pelo cristianismo, ou como sugere a autora, um antigo herói que foi divinizado.
O capítulo O começo e o fim apresenta algumas considerações sobre cosmogonia (a criação do universo e dos seres) segundo a mitologia germânica, além das concepções escatológicas (o fim dos tempos). Assim como para muitas crenças de origem indo-européia e euro-asiáticas, os Vikings acreditavam que a estrutura física do universo e mesmo as noções de tempo e destino, estavam intimamente relacionadas com uma árvore, denominada de Yggdrasill. O mais interessante porém, fica por conta das narrativas do fim do mundo, conhecidas por Ragnarök, onde todos os principais deuses morrem. Neste momento específico, Davidson rompe com muitos pesquisadores, negando a influência do referencial cristão na elaboração destas narrativas, que para ela teriam conotações essencialmente paganistas.
A última parte do livro é A despedida dos antigos deuses, um balanço acerca das características gerais da religiosidade nórdica e do período de transição para o cristianismo. Parte dos elementos míticos e religiosos dos Vikings era relacionados com o ambiente geográfico em que viviam, ou mesmo explicado por ele, enquanto que o restante foi intimamente ligado às estruturas jurídicas, políticas e econômicas da sociedade nórdica. Um momento muito interessante é a discuss ão que a autora estabelece acerca do público dos mitos: a receptividade das narrativas orais dependia da classe social e da região em que a mesma foi propagada. A falta de uma organização central favoreceu a variação de cultos e crenças. Para a autora, o individualismo da religiosidade Viking foi a maior causa de seu declínio com a chegada da nova fé, o cristianismo. Com a mudança do estilo de vida dos homens nórdicos, a partir do século X, o paganismo já não oferecia os mesmos vínculos sobrenaturais, confortos materiais e satisfações cotidianas que antes.
Infelizmente a obra apresenta diversos problemas de editoração. Em primeiro lugar, a tradução cometeu muitos erros como “Palácio dos derrotados” (a tradução mais correta do inglês para o português seria ‘salão dos que morreram em batalha’, p. 206); “Oseburg” (o correto é Oseberg, p. 114); “Destruição dos poderes” (Consumação dos destinos dos poderes supremos, p. 203); “100 d.C.” (na realidade seria século IX d.C., p. 115); “Odim (...) perfurado por uma espada” (Gungnir é uma lança, p. 122); “deflagrando” (inaugurando, p. 146); “eterna representação” (eterno retorno, p. 172); “um tanto patética” (um tanto estranha, p. 81). Algumas frases traduzidas não tem sentido nenhum, como em “A serpente mundial, enrolada ao redor da terra, embaixo do mar, que é uma mudança livre em Ragnarok” (p. 201). O correto seria traduzir a última frase por: liberta-se no Ragnarök. Erros de impressão permeiam toda a obra, como “poeterior” (posterior, p. 55), “durane” (durante, p. 166), sepente (serpente, p. 201). O tradutor também não seguiu nenhum critério para a transcrição de termos do nórdico antigo, pois enquanto a obra original conserva os mesmos, a edição brasileira optou por adaptar alguns (como Odim, que na maioria das adaptações ao português é Odin; Frei, o correto seria Freir ou Freyr; Tor, a grafia mais recomendada seria como nas línguas germânicas modernas, Thor), enquanto que em outras ocasiões as palavras permaneceram na versão original (a exemplo de seiðr, seiðkona, Niðhøggr, Yggdrasill).
Esperamos que outras importantes obras relacionadas com a História e a mitologia da Escandinávia futuramente venham a ser traduzidas em língua portuguesa, mas que tenham uma editoração e tradução muito mais criteriosa, não somente beneficiando os pesquisadores de medievalística, mas também a todos os que tem interesse em estudos de sociedades e culturas históricas em geral.
Dezenas de livros, documentários, eventos acadêmicos e descobertas arqueológicas vem demonstrando o valor da Escandinávia para o estudo da formação do Ocidente Medieval e Moderno, bem como a desmitificação de muitos estereótipos e fantasias.[1] Dentre todas as áreas de investigação algumas das mais promissoras são os estudos de mitologia e religião pré-cristã, extremamente importantes para se entender o posterior processo de estruturação da mentalidade religiosa na Europa.
Uma das mais famosas pesquisadoras de mitologia germânica é a inglesa Hilda Davidson, autora do clássico Gods and Myths of Northern Europe, originalmente publicado em 1964 e que agora recebe a primeira tradução para a língua portuguesa.[2] Esta obra se tornou um marco das investigações na área, tanto por seu caráter sistematizador quanto pela utilização de diversos tipos de fontes, sejam elas históricas (documentos e livros de caráter nobiliárquico/institucionais), literárias, epigráficas, iconográficas e arqueológicas. A obra é dividida em oito capítulos, seguidos de uma interessante relação de referências onomásticas e de um índice remissivo.
No início da obra Davidson discute suas vinculações teóricas e influências metodológicas. Partidária de Mircea Eliade e Georges Dumézil, a autora defendia o estudo do mito para o entendimento da sociedade, da estrutura política e cultural dos povos durante a História. Para ela, somente o estudo comparado do mito poderia fornecer elementos para os pesquisadores contemporâneos conseguirem entender a motivação e o significado simbólico destas narrativas para as sociedades antigas. Assim, Davidson realizou um estudo comparativo do panteão escandinavo com as formas míticas mais antigas, como os germanos do período das migrações, procurando encontrar padrões em comum entre os simbolismos míticos destas sociedades.[3]
No primeiro capítulo, O mundo dos deuses do Norte, a autora discute questões genéricas relacionadas com as fontes sobre a mitologia germânica: a poesia dos skålds na Escandinávia pagã, a questão da influência do referencial cristão na literatura do período pós Era Viking, as estruturas míticas da Edda em Prosa e Poética. Trata-se de uma parte essencial para aqueles que ainda não tem um conhecimento detalhado sobre a temática, tanto quanto uma importante introdução na crítica de fontes manuscritas da Idade Média (heurística medieval).
O segundo capítulo, Os deuses da batalha, dedica-se à interpretação dos cultos religiosos relacionados ao mais importante deus do panteão germano-escandinavo, Óðinn (Odin). Aqui, a autora inclui-se em uma interpretação historiográfica muito importante na medievalística nórdica, a de que os cultos no mundo germânico não eram centralizados, sem organização de uma instituição central, não hierarquizados, sem uma fé comum, variáveis conforme a região e a classe social.[4] O deus Óðinn era o mais cultuado pelos nobres e reis (konungars), sendo por isto mesmo a principal divindade na literatura escandinava, associado com a magia e a guerra. Seu culto estava associado com sacrifícios violentos e personagens marciais como as valkyrjor (valquírias), as virgens condutoras dos guerreiros mortos em batalha para o palácio de Valhöll (Valhala, “salão dos mortos”).
Outro destaque na interpretação da autora é para os berserkir (“os que portam camisas de urso”), guerreiros fanáticos dedicados ao culto de Óðinn, utilizados amplamente como mercenários e guardas de elite na Escandinávia da Era Viking. Este mesmo deus volta a ser interpretado em outro capítulo do livro (Os deuses dos mortos), onde Davidson dedica-se a resgatar aspectos relacionados com funerais e magia, inclusive analisando a figura de Óðinn como xamã.[5] Outra importante questão enfocada pela autora é a disputa entre algumas crenças religiosas nas sociedades nórdicas, especialmente entre os cultos odínicos e os relacionados à fertilidade.[6]
O próximo capítulo, O deus do Trovão, dedica-se ao estudo da mais popular deidade entre os Vikings, Þórr (Thor). Herói relacionado na luta contra as forças do caos e especialmente vinculado com fenômenos atmosféricos e árvores, este deus foi o favorito dos camponeses e agricultores, a exemplo dos colonos da ilha da Islândia.
As divindades relacionadas com a fertilidade são resgatadas no capítulo 4 (Os deuses da paz e da abundância). O deus Freyr, associado com os reis, e sua irmã Freyja são os mais importantes. Freyja recebia importantes cultos mesmo após a introdução do cristianismo na Escandinávia, além de possuir toda uma série de mitos associados com a vida após a morte dos guerreiros. Também Freyja era envolvida com um tipo de magia conhecida como seiðr (“canto”), possivelmente influenciada pelo xamanismo lapônico e que era utilizado para fins proféticos, curativos e de fertilidade ou prosperidade da comunidade
Algumas divindades mais obscuras e pouco conhecidas foram analisadas por Hilda Davidson em outro capítulo (Os deuses enigmáticos), como Baldr, Bragi, Íðunn, Mímir, Forseti, e especialmente Loki. Este último deus foi uma figura extremamente complexa, enigmática, sinistra e, às vezes cômica, especialmente citado e representado iconograficamente pelas fontes do período cristão, associado diretamente com Satanás. Por sua vez, o deus Baldr foi interpretado por Davidson a partir de uma perspectiva diferenciada. Não existem evidências de um antigo culto a Baldr antes da Era Viking, o que leva alguns pesquisadores a afirmarem que foi um mito criado pelo cristianismo, ou como sugere a autora, um antigo herói que foi divinizado.
O capítulo O começo e o fim apresenta algumas considerações sobre cosmogonia (a criação do universo e dos seres) segundo a mitologia germânica, além das concepções escatológicas (o fim dos tempos). Assim como para muitas crenças de origem indo-européia e euro-asiáticas, os Vikings acreditavam que a estrutura física do universo e mesmo as noções de tempo e destino, estavam intimamente relacionadas com uma árvore, denominada de Yggdrasill. O mais interessante porém, fica por conta das narrativas do fim do mundo, conhecidas por Ragnarök, onde todos os principais deuses morrem. Neste momento específico, Davidson rompe com muitos pesquisadores, negando a influência do referencial cristão na elaboração destas narrativas, que para ela teriam conotações essencialmente paganistas.
A última parte do livro é A despedida dos antigos deuses, um balanço acerca das características gerais da religiosidade nórdica e do período de transição para o cristianismo. Parte dos elementos míticos e religiosos dos Vikings era relacionados com o ambiente geográfico em que viviam, ou mesmo explicado por ele, enquanto que o restante foi intimamente ligado às estruturas jurídicas, políticas e econômicas da sociedade nórdica. Um momento muito interessante é a discuss ão que a autora estabelece acerca do público dos mitos: a receptividade das narrativas orais dependia da classe social e da região em que a mesma foi propagada. A falta de uma organização central favoreceu a variação de cultos e crenças. Para a autora, o individualismo da religiosidade Viking foi a maior causa de seu declínio com a chegada da nova fé, o cristianismo. Com a mudança do estilo de vida dos homens nórdicos, a partir do século X, o paganismo já não oferecia os mesmos vínculos sobrenaturais, confortos materiais e satisfações cotidianas que antes.
Infelizmente a obra apresenta diversos problemas de editoração. Em primeiro lugar, a tradução cometeu muitos erros como “Palácio dos derrotados” (a tradução mais correta do inglês para o português seria ‘salão dos que morreram em batalha’, p. 206); “Oseburg” (o correto é Oseberg, p. 114); “Destruição dos poderes” (Consumação dos destinos dos poderes supremos, p. 203); “100 d.C.” (na realidade seria século IX d.C., p. 115); “Odim (...) perfurado por uma espada” (Gungnir é uma lança, p. 122); “deflagrando” (inaugurando, p. 146); “eterna representação” (eterno retorno, p. 172); “um tanto patética” (um tanto estranha, p. 81). Algumas frases traduzidas não tem sentido nenhum, como em “A serpente mundial, enrolada ao redor da terra, embaixo do mar, que é uma mudança livre em Ragnarok” (p. 201). O correto seria traduzir a última frase por: liberta-se no Ragnarök. Erros de impressão permeiam toda a obra, como “poeterior” (posterior, p. 55), “durane” (durante, p. 166), sepente (serpente, p. 201). O tradutor também não seguiu nenhum critério para a transcrição de termos do nórdico antigo, pois enquanto a obra original conserva os mesmos, a edição brasileira optou por adaptar alguns (como Odim, que na maioria das adaptações ao português é Odin; Frei, o correto seria Freir ou Freyr; Tor, a grafia mais recomendada seria como nas línguas germânicas modernas, Thor), enquanto que em outras ocasiões as palavras permaneceram na versão original (a exemplo de seiðr, seiðkona, Niðhøggr, Yggdrasill).
Esperamos que outras importantes obras relacionadas com a História e a mitologia da Escandinávia futuramente venham a ser traduzidas em língua portuguesa, mas que tenham uma editoração e tradução muito mais criteriosa, não somente beneficiando os pesquisadores de medievalística, mas também a todos os que tem interesse em estudos de sociedades e culturas históricas em geral.
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