Krak dos Cavaleiros

sexta-feira, 24 de junho de 2011

São João Batista - por Leonardo da Vinci

João Cristo

Ao pesquisar o papel desempenhado por Leonardo da Vinci na falsificação
que é o Sudário de Turim, ficamos surpresos ao descobrir com que
freqüência João Batista aparece na vida do artista. Não apenas Leonardo era
um grande admirador do santo, como muitos dos lugares ligados ao Mestre
eram, talvez coincidentemente, dedicados a João. A maior parte ficava em
Florença, a amada cidade de Leonardo, que abriga em seu coração o
extraordinário Batistério. Em 1995, quando fazíamos um documentário para
televisão sobre o Sudário, visitamos o local com uma pequena equipe de
filmagem, o que nos assegurou ter o local somente para nós durante algum
tempo - o mágico acrônimo BBC é praticamente um "abre-te sésamo" -,
antes que suas portas fossem abertas ao público. O Batistério é uma
estranha construção octogonal que data do período da Primeira Cruzada e
cujo formato incomum possivelmente se deve aos templários, que (assim
como suas características igrejas redondas) também promoviam a forma
octogonal, com base na crença de que assim era o Templo de Salomão em
Jerusalém. Nosso principal interesse em visitá-lo era que uma das paredes
laterais da construção abrigava a única escultura remanescente de Leonardo
(um trabalho em conjunto com Giovanni Francesco Rustici). Tratava-se, é
claro, de uma estátua de João Batista. E, como em todas as imagens de João
feitas por Leonardo, ele é retratado com o dedo indicador em riste.
Como vimos, a Heresia Européia está parcialmente centrada na figura do
Batista, embora as verdadeiras razões disso permaneçam deliberadamente
obscuras: de fato, desde que começamos nossa pesquisa sobre o assunto,
alguns anos atrás, logo tornou-se evidente que isso constituía um segredo
interno de organizações como as dos Cavaleiros Templários e a da
Maçonaria. No entanto, por que ainda se considera prudente manter esse
segredo tão zelosamente guardado?
A visão tradicional que os cristãos têm de João Batista é bastante conhecida.
Acredita-se que o ministério de Jesus tem início com seu batismo por João -
de fato, dois dos Evangelhos canônicos começam com João pregando às
margens do rio Jordão. A imagem que os autores criam de João é a de um
evangelista severo e asceta que deixa a vida de ermitão no deserto para
conclamar o povo de Israel a arrepender-se de seus pecados e ser batizado.
Desde o início, há algo tão inflexível e frio em João que faz com que os
leitores atuais sintam-se desconfortáveis; na verdade, não há nada nos
Evangelhos que justifique a extrema veneração que lhe dedicaram várias
gerações de hereges - com certeza nada da reverência que lhe demonstraram
homens de intelecto privilegiado como Leonardo da Vinci.
Os relatos dos Evangelhos, de fato, pouco revelam sobre João Batista. Eles
nos dizem que o batismo por ele ministrado era um sinal público de
arrependimento, e que muitos responderam ao seu chamado e foram
ritualmente imersos nas águas do rio Jordão, inclusive Jesus. De acordo
com Mateus, Marcos, Lucas e João, o Batista proclamava-se um mero
precursor do Messias profetizado, que ele reconhecia ser Jesus. Tendo
cumprido seu papel, praticamente desapareceu de cena, embora existam
indicações de que continuou a batizar durante algum tempo.
O Evangelho de Lucas conta-nos que Jesus e João eram primos, e, junto
com o relato da concepção e do nascimento de Jesus, oferece uma descrição
da concepção e do nascimento de João - que acontecem paralelamente aos
de Jesus mas são claramente menos miraculosos. Os pais de João, o
sacerdote Zacarias e Isabel, não têm filhos e estão em idade avançada, mas
são informados pelo anjo Gabriel de que foram escolhidos para ter um filho;
pouco tempo depois Isabel, já na menopausa, concebe. É ao encontro de
Isabel que vai Maria quando se descobre grávida de Jesus. Isabel está então
com seis meses de gravidez, e na presença de Maria seu filho ainda não
nascido "saltou no seu ventre"; é assim que ela fica sabendo que a criança
de Maria é o tão aguardado Messias. Isabel então louva Maria, o que a
inspira a proclamar o "cântico" que hoje é conhecido como Magnificat.
Lemos nos Evangelhos que, logo após ter batizado Jesus, João foi preso a
mando de Herodes Antipas. A razão alegada é que João havia publicamente
condenado o recente casamento de Herodes com Herodíades, ex-mulher de
seu meio-irmão Filipe - casamento que, sendo ela divorciada de Filipe,
contrariava as leis judaicas. Após um período incerto dentro da prisão, João
é executado. Na história conhecida, Salomé, filha de Herodíades com o exmarido,
dança para o padrasto na comemoração do aniversário deste,
deixando-o tão embevecido que ele promete dar a Salomé tudo o que ela
desejar, até mesmo "metade de seu reino". Induzida por Herodíades, ela
pede a cabeça de João Batista em uma bandeja. Sem poder voltar atrás em
sua palavra, Herodes, que a essa altura já começara a admirar o Batista,
relutantemente concorda e manda decapitar João. Os discípulos de João
obtêm permissão para levar seu corpo e sepultá-lo, embora não se saiba ao
certo se levaram também a cabeça.
A história tem todos os elementos - um rei tirânico, uma mãe madrasta, uma
dançarina púbere e a morte horrível de um famoso homem santo -, e por
isso forneceu um fértil material para várias gerações de artistas, poetas,
músicos e dramaturgos. Seu fascínio parece não ter fim, o que talvez seja
curioso para um episódio que consiste em apenas alguns versos dos
Evangelhos. Duas adaptações em particular escandalizaram o público no
início do século XX. Uma delas é a ópera Salomé, de Richard Strauss, que
retrata uma garota promíscua tentando seduzir João na prisão e, tendo sido
repudiada, pede sua cabeça em vingança, beijando então seus lábios já sem
vida de modo triunfante. A peça de mesmo nome de Oscar Wilde teve uma
única apresentação devido ao terror causado pela pré-publicidade, que se
centrou basicamente no fato de que ele próprio representava o papel-título.
Entretanto, o famoso cartaz de Aubrey Beardsley para a peça ainda
permanece como uma descrição gráfica da interpretação de Wilde da
história bíblica e, mais uma vez, centra-se na suposta luxúria necrófila de
Salomé.
Esse inebriante coquetel de imaginação erótica tem pouca ligação com o
seco relato do Novo Testamento, cujo único propósito parece ser o de
estabelecer, sem sombra de dúvida, que João era o precursor de Jesus e
espiritualmente inferior a este - e também preencher o papel profetizado do
Elias reencarnado, que deveria preceder a chegada do Messias.
Entretanto, há uma outra fonte facilmente acessível de informação acerca de
João: o livro Antiquities of the Jews, de Josefo. Ao contrário de sua suposta
referência a Jesus, a autenticidade da referência a João não está em debate
porque se encaixa naturalmente dentro da narrativa, e é um relato impessoal
que não faz elogios a João - e difere dos relatos dos Evangelhos de modo
significativo.
Josefo registra a pregação e o batismo ministrado por João, e o fato de que
sua popularidade e influência sobre as massas alarmavam Herodes Antipas,
que então o mandou prender e executar em uma espécie de "manobra
preventiva". Josefo não fornece detalhes de sua prisão ou das circunstâncias
ou forma da sua execução, e não faz qualquer menção à suposta crítica de
João ao casamento de Herodes. Ele enfatiza o enorme apoio popular a João
e acrescenta que, não muito tempo após sua execução, Herodes sofreu uma
séria derrota em batalha, o que o povo tomou como sinal de punição pelo
crime que ele cometera contra o Batista.
O que podemos concluir sobre João a partir dos relatos dos Evangelhos e de
Josefo? Para começar, a história de que ele batizou Jesus deve ser autêntica,
pois sua inclusão sugere que esse fato era por demais conhecido para ser
excluído - mesmo considerando a tendência dos autores dos Evangelhos em
marginalizar João sempre que possível.
João pregava em Peréia, a leste do Jordão, um território que Herodes
também governava, além da Galiléia. A descrição em Mateus é
contraditória; o Evangelho de João é mais específico e cita duas pequenas
cidades onde João batizava: "Betânia, do outro lado do Jordão" (1:28) - um
vilarejo próximo à principal rota comercial - e Enon, no norte do vale do
Jordão (3:23). Os dois lugares são bastante distantes um do outro, portanto
parece que João viajou muito durante sua missão.
A impressão do ermitão asceta fomentada pelas traduções inglesas dos
Evangelhos pode, de fato, representar um erro de conceito. A palavra grega
eremos, traduzida como "deserto" ou "local despovoado", pode significar
qualquer lugar isolado. É significativo que a mesma palavra seja utilizada
para designar o local onde Jesus alimentou os cinco mil. Carl Kraeling, em
seu estudo sobre João, considerado o texto acadêmico de referência sobre o
assunto, também argumenta que a dieta de "gafanhoto e mel" que João
supostamente consumia, não implica especificamente um estilo de vida
ascético.
É provável também que a missão de João não se limitasse apenas aos
judeus. O relato de Josefo, embora de início apresente João exortando "os
judeus" à piedade e a uma vida virtuosa, acrescenta que "outros se juntavam
[i.e. ao redor dele] (pois também ficavam extremamente entusiasmados ao
ouvir seus ensinamentos)". Alguns estudiosos acreditam que esses "outros"
só podem ser não-judeus, e de acordo com o britânico Robert L.Webb,
estudioso da Bíblia,
...não há nada no conteúdo a sugerir que não poderiam ser gentios. A
localização do ministério de João sugere que ele poderia estar em contato
com os gentios que viajavam pelas rotas de comércio vindos do Oriente,
bem como com os gentios que viviam na região da Transjordânia.
Uma outra concepção errônea é a da idade de João, que se considera ser
mais ou menos a mesma de Jesus. Entretanto, a conclusão a que se chega a
partir dos quatro Evangelhos é de que João pregava já há muitos anos quando
batizou Jesus e que era, talvez por uma grande margem de diferença, o
mais velho dos dois. (A história do nascimento de João no Evangelho de
Lucas é, como veremos, em grande parte inventada e inverossímil.)
Como a de Jesus, a mensagem de João era um ataque implícito ao culto que
se praticava no Templo de Jerusalém, não apenas no que dizia respeito à
possível corrupção de seus oficiantes, mas a tudo o que ele representava. A
convocação de João ao batismo pode ter irritado as autoridades do Templo,
não somente porque ele afirmava que o batismo era espiritualmente superior
aos seus ritos, como também porque era gratuito.
E há também as irregularidades presentes nas descrições sobre sua morte,
especialmente quando comparadas com o relato de Josefo. Os motivos
imputados a Herodes - medo da influência política de João (Josefo) e raiva
por sua crítica ao casamento do governante (Evangelhos), não são mutuamente
excludentes. Os arranjos conjugais de Herodes Antipas tiveram,
realmente, implicações políticas, mas não por causa da mulher com quem
ele se casara. A questão era a mulher de quem ele teve que se divorciar para
se casar novamente. Sua primeira esposa era uma princesa do reino árabe de
Nabatéia, e o insulto que a separação representou para essa família real
deflagrara uma guerra entre os dois reinos. Nabatéia fazia fronteira com o
território de Peréia, governado por Herodes e onde João fazia suas
pregações. Portanto, a censura de João ao casamento de Herodes
efetivamente o colocou do lado do rei inimigo, Aretas, com a ameaça
implícita de que, se a população concordasse com João, poderia acabar
apoiando Aretas contra Antipas.
Talvez isso pareça por demais acadêmico, mas intriga o fato de que os
Evangelhos tenham "suavizado" os verdadeiros motivos que levaram
Herodes a executar João. Se reconhecemos que esses livros são
essencialmente material de propaganda e que quando obscurecem algum
acontecimento o fazem de modo deliberado, a outra possibilidade levanta a
questão de por que os autores dos Evangelhos se incomodariam com esse
episódio.
É compreensível que os autores dos Evangelhos quisessem censurar
qualquer sugestão de que João gozava de grande popularidade - isto é
compatível com o tratamento geral que dedicam a ele -, mas se tivessem
que inventar alguma coisa, seria de esperar que tramassem uma história que
apoiasse Jesus de algum modo. Por exemplo, poderiam ter dito que João
fora preso por proclamar que Jesus era o Messias.
Os relatos dos Evangelhos também cometem um engano. Dizem que João
criticava Herodes Antipas porque este se casara com a ex-mulher de seu
meio-irmão Felipe. No entanto, embora as circunstâncias do casamento
sejam historicamente precisas, o meio-irmão em questão era na verdade um
outro Herodes, não Felipe. Este segundo Herodes era o pai de Salomé.
Apesar do fato de João, como Madalena, ter sido deliberadamente
marginalizado pelos autores dos Evangelhos, podem-se ainda encontrar
pistas acerca de sua influência sobre os contemporâneos de Jesus. Em um
episódio cujas implicações parecem não ter ocorrido à maioria dos cristãos,
os discípulos de Jesus dizem a ele: "Senhor, ensina-nos a orar, assim como
também João ensinou aos seus discípulos". Lemos então que Jesus ensinoulhes
a oração que viria ser conhecida como Pai Nosso ("Pai nosso que estais
no céu, santificado seja o vosso nome...").
Já no século XIX o grande egiptólogo Sir E. A. Wallis observou que as
palavras iniciais do "Pai Nosso" se originavam de uma antiga oração
egípcia para Osíris-Amon, que assim começa: "Amon, Amon que estais no
céu...". É claro que isso data de séculos antes de João e Jesus, e que o "Pai"
invocado na oração não é nem Jeová nem seu suposto filho, Jesus. De
qualquer modo, o "Pai Nosso" não foi criado por Jesus.
Diz-se que João prostrou-se em sinal de reverência ante a figura de Jesus ao
batizá-lo. Ficamos com a impressão de que toda a sua missão, talvez sua
vida inteira, foi dirigida para esse único evento. Na verdade, porém, existem
claras indicações de que João e Jesus, embora estreitamente associados no
início da trajetória deste último, eram rivais irreconciliáveis. Isso não
escapou à atenção da maioria dos mais respeitados estudiosos da Bíblia.
Como escreve Geza Vermes:
O objetivo dos autores dos Evangelhos era, sem dúvida, dar a impressão
de amizade e estima mútua, mas suas tentativas são superficiais, e um
exame mais cuidadoso das fragmentárias evidências sugere que, pelo menos
no que diz respeito aos seus respectivos discípulos, os sentimentos de
rivalidade não estavam ausentes.
Vermes também descreve a insistência de Mateus e Lucas na precedência
de Jesus sobre João como algo "forçado". Realmente, para leitores
objetivos, existe algo profundamente suspeito na repetida ênfase, um tanto
enjoativa, na superioridade "daquele que veio depois". Aqui temos um João
Batista que efetivamente rasteja perante Jesus.
Entretanto, como diz Hugh Schonfield:
Temos conhecimento, através de fontes do próprio cristianismo, de que
havia uma importante seita judaica que rivalizava com os seguidores de
Jesus e afirmava que João Batista é que era o verdadeiro Messias...
Schonfield também comenta "a rivalidade irreconciliável" entre seus
respectivos seguidores, mas acrescenta que, devido à influência de João
sobre Jesus ser bastante conhecida, "eles não podiam desprezar o Batista, e
tiveram que inventar, em vez de enfatizar, seu lugar secundário" .
(Sem entender essa rivalidade, não se pode compreender plenamente o
verdadeiro papel nem de João nem de Jesus. Deixando de lado as amplas
implicações para a própria teologia cristã, a recusa em reconhecer a
hostilidade entre Jesus e João torna a mais radical das novas teorias
totalmente insatisfatória. Por exemplo, como vimos, Ahmed Osman
argumenta que Jesus foi inventado pelos seguidores de João Batista a fim de
que se cumprisse sua profecia sobre aquele que estava por vir. De modo
semelhante, Knight e Lomas, no livro The Hiram Key, chegam ao ponto de
afirmar que Jesus e João eram coMessias trabalhando em conjunto, uma
teoria que implica uma íntima relação entre os dois pregadores; nada
poderia estar mais longe da verdade.)
A conclusão mais lógica é a de que Jesus começou como discípulo de João
e se separou dele mais tarde para formar seu próprio grupo. (É bastante
provável que tenha sido batizado por João, mas como um acólito, não como
o Filho de Deus!) Os Evangelhos registram que Jesus recrutou seus
primeiros discípulos entre os seguidores de João.
De fato, o grande estudioso inglês da Bíblia C. H. Dodds traduz a frase do
Evangelho de João, "aquele que vem depois de mim" (ho opiso mou
erchomenos), como "aquele que me segue". Isso poderia significar "discípulo",
dado que a ambigüidade é a mesma do inglês. Dodds achava que era
exatamente isso.
A crítica mais recente à Bíblia assinala que João jamais fez sua famosa
proclamação sobre a superioridade de Jesus, nem mesmo insinuou que este
era o Messias. Essa idéia é corroborada por vários fatos.
Os Evangelhos (de modo bastante ingênuo) registram que João, quando
estava encarcerado, questionou a autenticidade do messiado de Jesus. A
sugestão é de que ele duvidava de sua própria afirmação anterior de que
Jesus era o Messias, mas isso poderia também ser um outro exemplo em
que os autores dos Evangelhos precisaram adaptar um episódio para seus
próprios propósitos.Teria João inequivocamente negado que Jesus era o
Messias talvez chegando mesmo a denunciá-lo?
Do ponto de vista da mensagem cristã as implicações relativas ao episódio
são, ou deveriam ser, extremamente perturbadoras. Pois se por um lado os
cristãos aceitam que João fora divinamente inspirado para reconhecer Jesus
como o Messias, por outro o questionamento de João na prisão indica, no
mínimo, que ele estava em dúvida. O cárcere certamente lhe dera muito
tempo para pensar, ou talvez a divina inspiração o tivesse abandonado.
Como veremos, os últimos seguidores de João, que Paulo encontrou em
Éfeso e Corinto quando fazia seu trabalho missionário, nada sabiam sobre a
suposta declaração de João proclamando que alguém maior viria depois
dele.
Uma das evidências mais fortes a indicar que o Batista nunca declarou que
Jesus era o Messias esperado é a de que os próprios discípulos de Jesus não
o reconheciam como tal, pelo menos no começo de seu ministério. Ele era
seu líder e professor, mas não há qualquer sugestão de que o seguiram de
início porque acreditavam que ele era o tão esperado Messias dos judeus. A
identificação de Jesus como o Messias parece ter se espalhado pouco a
pouco entre os discípulos, à medida que seu ministério se desenvolvia. No
entanto, Jesus deu início à sua missão após ter sido batizado por João: então
por que, se João realmente havia anunciado Jesus como o Messias, ninguém
mais na época sabia disso? (E os próprios Evangelhos deixam claro que as
pessoas o seguiam não porque ele fosse o Messias, mas por alguma outra
razão.)
E há uma outra consideração que nos faz pensar bastante. Quando o
movimento de Jesus começou a causar impacto, Herodes Antipas ficou
temeroso e, aparentemente, começou a pensar que Jesus era João
ressurrecto ou reencarnado (Marcos 6:14):
Ora, o rei Herodes ouviu falar dele (pois seu nome era ouvido em toda a
parte) e dizia: João Batista ressuscitou dentre os mortos, e por isso os
prodígios operam-se nele.
Essas palavras sempre foram motivo de confusão. O que Herodes quis dizer
com elas: que Jesus era de algum modo João reencarnado? No entanto,
dificilmente poderia ser isso, pois João e Jesus viveram na mesma época.
Antes de examinarmos essa história com mais profundidade, assinalemos
algumas implicações de relativa importância das palavras de Herodes.
A primeira é que ele não sabia que João vaticinara que "um maior do que
ele" viria depois, senão teria chegado à óbvia conclusão de que Jesus era
essa pessoa. Se a vinda do Messias fosse uma parte evidente dos
ensinamentos de João, como afirmam os Evangelhos, então Herodes deveria
estar ciente disso.
A segunda é que Herodes disse que "João... ressuscitou... e por isso os
prodígios operam-se nele Jesus]..." Isso sugere que João gozava de uma
reputação própria como fazedor de milagres, o que, entretanto, é
absolutamente negado nos Evangelhos - de fato, o Evangelho de João (10:4)
é tão enfático a esse respeito que se chega a suspeitar de um encobrimento.
Teria João transformado água em vinho, alimentado milhares com um
punhado de comida, curado doentes, até mesmo ressuscitado mortos?
Talvez sim. Mas uma coisa é certa: o Novo Testamento, sendo a
propaganda do movimento de Jesus, não é o lugar onde podemos esperar
encontrar tais afirmações.
Uma explicação possível das confusas palavras de Herodes sobre João
Batista ter renascido através de Jesus é, ao menos superficialmente,
impensável, tanto literal quanto metaforicamente. Contudo, lembremos que
estamos lidando com uma cultura e uma época tão diferentes da nossa que,
em muitos aspectos, parecia tratar-se de um outro mundo. Como observa
Carl Kraeling, em 1940, as palavras de Herodes só podem fazer sentido se
entendidas como refletindo idéias ocultas que eram correntes no mundo
greco-romano da época de Jesus. Essa sugestão foi acatada e ampliada por
Morton Smith em seu livro Jesus the Magician, de 1978. Como vimos,
Smith concluiu que a resposta para o enigma da popularidade de Jesus
reside em suas demonstrações de magia egípcia.
Naquela época acreditava-se que, para realizar magia, um feiticeiro
necessitava ter poder sobre um demônio ou espírito. Os Evangelhos aludem
a isso em uma passagem em que Jesus faz referência à acusação feita contra
João de que "ele tinha um demônio". Não é, como à primeira vista parece,
uma referência à possessão por um espírito maligno, mas sim que João tinha
um demônio sob seu poder.
A hipótese de Kraeling, dentro desse contexto, era de que as palavras de
Herodes Antipas podiam ser entendidas como uma referência a esse
conceito, porque não eram apenas os demônios que podiam ser
"escravizados" dessa maneira, mas também o espírito de um ser humano,
especialmente um que fora assassinado. Um espírito ou alma assim
escravizado poderia, acreditava-se, realizar as tarefas que seu mestre
comandasse. (Tal acusação foi algum tempo depois lançada contra Simão
Mago, que, segundo diziam, "escravizara” o espírito de um menino
assassinado.)
Kraeling escreve:
Os detratores de João utilizaram-se da ocasião de sua morte para espalhar a
idéia de que seu espírito desencarnado estava a serviço de Jesus, como
instrumento para a realização de trabalhos de magia negra - um
reconhecimento nada pequeno do poder de João.
Com essa explicação em mente, Morton Smith assim traduziu as palavras
de Herodes:
João Batista ressuscitara dentre os mortos [através da necromancia de
Jesus; Jesus agora o tinha em seu poder]. E por isso [posto que Jesus-João
pode controlá-los] prodígios [inferiores] são realizados [seus milagres] por
ele [i.e. sob suas ordens].
Em apoio a essa idéia, Smith cita um texto de magia presente num papiro
que hoje se encontra em Paris. A invocação - significativamente, talvez - é
dirigida ao deus Hélios:
Dê-me autoridade sobre o espírito desse homem assassinado, de cujo corpo
possuo uma parte...
De especial interesse nesse contexto são os dons que essa operação mágica
pretende conferir ao mago: a habilidade de curar e predizer se uma pessoa
doente viverá ou morrerá, e a promessa de que "você será venerado como
um deus..."
Um outro episódio serve para ressaltar o fato de que a popularidade de João
era, para dizer o mínimo, maior do que a de Jesus. Tal episódio ocorre
próximo do final do ministério de Jesus, quando este está pregando para as
multidões no Templo de Jerusalém. Os "príncipes dos sacerdotes e os anciãos"
confrontam-no abertamente, propondo questões traiçoeiras na
esperança de pegá-lo em contradição - questões que Jesus contorna com a
presença de espírito típica de um político experiente. Eles exigem que Jesus
lhes diga quem lhe deu autoridade para falar como fala. Jesus responde com
outra pergunta: "Donde era o batismo de João? Do céu ou dos homens?"
A pergunta faz seus oponentes ponderarem:
E eles refletiam consigo, dizendo: Se lhe dissermos, do céu, ele dirá: Por
que razão, pois, não crestes nele?
E se lhe dissermos, dos homens, tememos o povo. Porque todos tinham
João como um profeta.
Em face desse beco sem saída, declinaram de responder.
O que é significativo nessa disputa é que Jesus usou o temor dos sacerdotes
à popularidade de João contra eles mesmos, em vez de se apoiar na sua
própria. Como vimos, Josefo destacou a influência e o apoio que João tinha
entre as pessoas: o Batista não era um pregador itinerante como outro
qualquer, mas um líder de grande carisma e poder que, por alguma razão,
arrebanhou um grande número de seguidores. De fato, de acordo com
Josefo, tanto os judeus quanto os gentios "ficavam extremamente
entusiasmados ao ouvir seus ensinamentos".
Um curioso episódio, relatado no Evangelho apócrifo chamado Livro de
Tiago ou Proto-evangelho, indica que João era importante por si só. Esse
Evangelho foi compilado muito tempo depois e inclui vários relatos da
infância de Jesus que ninguém hoje em dia leva a sério, mas que incorpora
materiais de diversas fontes e, portanto, pode conter pelo menos algumas
pistas sobre tradições bem conhecidas. É com certeza difícil entender como
alguém familiarizado com os Evangelhos canônicos poderia tê-lo inventado.
No relato da infância de Jesus e João - após a conhecida história do
nascimento de Jesus e da visita dos Sábios - Herodes ordena o Massacre dos
Inocentes. À primeira vista isso é idêntico à versão presente no Novo
Testamento. Entretanto, logo toma um rumo radicalmente diferente.
A reação de Maria, ao ficar sabendo do massacre, é simplesmente enrolar o
bebê com panos e colocá-lo em uma manjedoura, provavelmente para
escondê-lo dos soldados. No entanto, parece que João é que é o objeto da
busca. Lemos ali que Herodes envia seus homens para interrogar Zacarias,
pai de João, e eles voltam dizendo que ele não sabe onde estão sua mulher e
filho:
Herodes ficou irado e disse: o filho dele será o rei de Israel.
Nessa versão, é Isabel que foge com João para o interior do país. Existem
claros indícios aqui de uma outra "Sagrada Família", talvez até mesmo
rival.
Como vimos, João era muito popular e contava com grande número de
seguidores, os quais, como no movimento de Jesus, consistiam em um
círculo de discípulos que o acompanhavam onde quer que ele fosse e de
pessoas que se aproximavam para ouvi-lo falar. Também como no caso de
Jesus, após a morte de João seus discípulos começaram a escrever relatos
sobre sua vida e seus ensinamentos no que seriam efetivamente as escrituras
de João.
Os estudiosos reconhecem que tal corpo de "literatura sobre João" outrora
existiu, mas não sabemos onde está. Possivelmente foi destruído ou mantido
em segredo pelos "hereges". No entanto, parece que de fato continha
material que não correspondia aos relatos do Novo Testamento - do
contrário, de alguma forma teria sido conservado em domínio público.
A descrição de Lucas das concepções "conjuntas" de João e Jesus é
extremamente interessante .Analisando o relato, os estudiosos
estabeleceram, para além de qualquer dúvida, que na verdade se trata de
uma combinação de duas histórias separadas, uma contando a concepção de
Jesus e a outra a de João, que são (de acordo com Kraeling) "unificadas por
materiais que basicamente não tinham qualquer relação entre si". Em outras
palavras, Lucas (ou a fonte que ele utilizou) pegou duas histórias distintas e
tentou juntá-las utilizando o recurso literário do encontro das duas mulheres
grávidas, Maria e Isabel. A conclusão lógica é que a história da infância de
João era originariamente independente dos Evangelhos e provavelmente
anterior ao nascimento de Jesus. Isso contém importantes implicações. Uma
é que já havia histórias falando de João. A outra é que a versão de Lucas
para a Natividade foi evocada especificamente para se "sobrepor" à de João,
que já era conhecida. Afinal, o "milagre" do nascimento de João reside no
simples fato de seus pais serem idosos, enquanto Lucas faz de Jesus o
rebento de uma mãe virgem. E o único motivo que Lucas teria tido para
narrar tal história era que os seguidores de João ainda existiam e
rivalizavam com os de Jesus.
Essa hipótese se apóia em um fato que foi estabelecido pelos estudiosos,
mas permanece desconhecido para a maioria dos cristãos. O adorado
"cântico" de Maria, o Magnificat, era de fato de Isabel e referia-se ao filho
desta. As palavras associam a mulher com a personagem Ana do Antigo
Testamento, que gerou pela primeira vez em idade já avançada, e portanto
está mais de acordo com a condição de Isabel. De fato, alguns dos primeiros
manuscritos do Novo Testamento declaram que o cântico era de Isabel, e o
patriarca da Igreja Irineu (escrevendo por volta de 170) também afirma que
ela, e não Maria, proferiu as palavras.
Da mesma forma, na cerimônia da circuncisão de João, Zacarias declamou
uma "profecia", ou hino, conhecida como Benedictus, em louvor a seu filho
recém-nascido. Obviamente isso deve ter sido parte da história original do
nascimento de "João Batista". Tanto o Magnificat quanto o Benedictus
parecem ter sido hinos dedicados a João e que foram incorporados ao
"Evangelho de João" , adulterado então por Lucas a fim de torná-lo mais
aceitável para os seguidores de Jesus. Isso indica que as pessoas estavam
não só escrevendo relatos da vida de João como também fazendo elegias a
ele em versos e canções. Contudo, teriam essas tradições relativas a João
realmente fornecido aos autores dos Evangelhos o material no qual
basearam seus relatos sobre Jesus? Como diz Schonfield em seu livro
Essene Odyssey:
O contato com os seguidores de João Batista... familiarizaram os cristãos
com as histórias da natividade de João, nas quais ele figura como o jovem
Messias das tradições sacerdotais, nascido em Belém.
Além disso, os antigos textos da Igreja conhecidos como Considerações
Clementinas afirmam que alguns dos discípulos de João acreditavam que
ele era o Messias. E Geza Vermes acha que alguns episódios contidos nos
Evangelhos e nos Atos dão indicações de que os seguidores de João
acreditavam que ele era o Messias.
O conhecimento de que existiu essa "literatura sobre João" responde a
muitas questões sobre o Quarto Evangelho, que se atribui ao discípulo João.
Como vimos, existem muitas contradições internas nesse Evangelho.
Embora seja o único que se baseia no relato de uma testemunha ocular -
afirmação corroborada pelos detalhes circunstanciais encontrados no
próprio texto -, ele contém evidentes elementos gnósticos que não condizem
nem com os outros Evangelhos, nem com o tom prosaico geral do restante
do próprio livro. Isso é particularmente perceptível no "prólogo" relativo a
Deus e ao Verbo. O Evangelho de João é o mais anti-Batista de todos quatro
e, no entanto, é o único que nos diz explicitamente que os primeiros
discípulos de Jesus vieram das fileiras do Batista, incluindo o suposto autor
e testemunha, o próprio "discípulo amado".
Essas contradições, entretanto, não invalidam necessariamente os
Evangelhos. Está claro que o autor compilou os textos de diversas fontes, as
quais ele reuniu e interpretou de acordo com suas próprias crenças sobre
Jesus, reescrevendo o material onde achou que era necessário. Quem quer
que seja o autor, o Evangelho parece conter o testemunho em primeira mão
do "discípulo amado". No entanto, muitos dos mais influentes estudiosos do
Novo Testamento pensam que o autor também utilizou alguns dos textos
escritos por seguidores do Batista, os quais, de acordo com a autoridade em
estudos sobre o Oriente Médio, Edwin Yamauchi, "o Quarto Evangelista...
desmistificou e cristianizou".
O material do Batista consiste principalmente no prólogo e no que se
denominam "discursos da revelação" entre Jesus e seus discípulos. O
alemão Rudolf Bultmann, grande estudioso da Bíblia, argumenta que estes
... Se originaram, segundo se acreditava, de documentos dos seguidores de
João Batista que exaltavam João e lhe atribuíam o papel de Redentor
enviado do mundo da Luz. Portanto, uma parte considerável do Evangelho
de João não é originariamente cristã, mas resultado da transformação da
tradição do Batista.
Esses elementos do Evangelho de João são os mais gnósticos e, portanto,
foram os que mais causaram problemas aos historiadores que o estudaram.
Supõe-se com freqüência que, já que esses elementos não se coadunam com
os outros Evangelhos e o resto do Novo Testamento, o livro deve ter sido
escrito muito tempo depois que os outros. Entretanto, reconhecer que
vieram de outra fonte que não os seguidores de Jesus modifica totalmente o
quadro, e muitos comentadores associam o Quarto Evangelho a uma "fonte
gnóstica pré-cristã", que foi adaptada pelo autor. Essa fonte parece ser João
Batista e seus seguidores, que, ao que tudo indica, eram gnósticos.
(Essas descobertas podem fornecer uma solução para a controvérsia sobre a
data do Evangelho de João. Como vimos, a visão comum é a de que, dado o
material não judaico e gnóstico do Evangelho, ele tenha sido escrito após os
Evangelhos Sinópticos. Entretanto, se Jesus não era judeu, e grande parte do
material deriva dos seguidores de João Batista - que, como veremos, eram
gnósticos -, então é bastante possível que esse Evangelho seja
contemporâneo, ou até mesmo anterior, aos outros.)
Não só João reuniu um grande número de devotados seguidores durante seu
tempo de vida, como eles continuaram a crescer após sua morte de um
modo que é curiosamente paralelo ao crescimento do cristianismo. Existem
evidências de que o movimento de João iniciara uma Igreja própria que não
se confinou à Palestina. Em seu livro Jesus, de 1992, A. N. Wilson escreve:
Se a religião de João Batista (e sabemos que houve uma) tivesse se
tornado dominante no Mediterrâneo, em vez da religião de Jesus,
provavelmente saberíamos mais do que sabemos sobre essa cativante figura.
Seu culto sobreviveu até pelo menos meados dos anos 50, como o autor dos
Atos deixa escapar. . . Em Éfeso, pensavam que "O Caminho" (como era
conhecida a religião desses primeiros crentes) significava seguir o "batismo
de João". Tivesse Paulo tido uma personalidade mais fraca... ou se nunca
tivesse escrito as epístolas, o "batismo de João" bem poderia ter sido a
religião que atrairia a imaginação do mundo antigo, em lugar do batismo de
Cristo... O culto poderia até mesmo ter se desenvolvido a ponto de os então
joanitas, ou batistas, acreditarem que... João era Divino...
Esse acidente da história, entretanto, não aconteceu.
Portanto, até mesmo o Novo Testamento descreve a existência da Igreja de
João além das fronteiras de Israel. Bamber Gascoigne escreve:
Um grupo de pessoas que Paulo encontrou em Éfeso oferece um intrigante
vislumbre do potencial de desenvolvimento da religião - que Paulo
rapidamente cortou pela raiz.
Esse grupo de pessoas era, é claro, a Igreja de João. Sua própria existência
como entidade distinta após a morte de Jesus é um argumento de que João
jamais pregou a vinda de "um maior" depois dele, ou de que, se o tivesse
feito, essa pessoa não poderia ser Jesus. Parece que quando os joanitas
encontraram Paulo não tinham a menor idéia de tal profecia. E eles não
eram um culto insignificante. Foram descritos como "um séquito
internacional" que se estendia da Ásia Menor até Alexandria. Os Atos
registram que a religião de João fora levada até Éfeso por um alexandrino
chamando Apolo - aliás é a única referência a Alexandria em todo o Novo
Testamento.
Então João Batista tinha um outro grupo forte de seguidores, que o
perpetuaram como uma verdadeira igreja. Entretanto, supõe-se - como nos
comentários acima de A. N. Wilson - que esta foi absorvida pela Igreja
Cristã logo cedo. Com certeza, algumas de suas comunidades, como aquelas
encontradas por Paulo, foram suplantadas pela própria versão deste do
movimento de Jesus. Mas há uma forte evidência de que a Igreja de João
realmente sobreviveu.
Esse corpo de evidências, entretanto, enfatiza o papel de um personagem
que, à primeira vista, pode parecer completamente deslocado nessa história,
alguém que foi ultrajado ao longo da história cristã como o "pai de todas as
heresias" e adepto da magia negra do pior tipo. Seu nome passou até a
denominar um pecado, o de tentar comprar o Espírito Santo: simonia.
Estamos falando, é claro, de Simão Mago.
Ao contrário das duas outras figuras principais que estivemos discutindo -
Maria Madalena e João Batista -, Simão Mago não foi marginalizado pelos
cronistas do cristianismo; na verdade foi-lhe atribuído um papel quase
proeminente nos primeiros textos do cristianismo. Entretanto, ainda é
tachado de maléfico, como o homem que tentou imitar Jesus e que, em
determinado momento, chegou a se infiltrar na embrionária Igreja a fim de
conhecer seus segredos - até, é claro, ser desmascarado pelos Apóstolos.
Algumas vezes conhecido como "o primeiro herege", Simão Mago é
considerado alguém irredimível. Uma indicação dos motivos disso está no
fato de que os primeiros padres da igreja consideravam a palavra gnóstico
como sinônimo de "herege", e Simão era gnóstico (embora não tenha sido,
como acreditavam, o fundador do Gnosticismo).
Simão faz apenas uma breve aparição no Novo Testamento, nos Atos dos
Apóstolos (8:9-24). Significativamente, ele era um samaritano que, de
acordo com os Atos, utilizava a magia para "enfeitiçar" o povo de Samaria.
Quando o apóstolo Felipe lá pregou, Simão ficou tão impressionado que
pediu para ser batizado. No entanto, esse ato foi considerado como apenas
um artifício para que pudesse obter para si o poder do Espírito Santo. Ele
então ofereceu dinheiro a Pedro e João, para conseguir aquele poder, e foi
severamente repreendido. Temendo por sua alma, Simão se arrependeu e
pediu-lhes que orassem por ele.
Entretanto, os primeiros padres da igreja sabiam muito mais sobre esse
personagem, e seus relatos contradizem o simples conto moralista do livro
dos Atos. Ele nascera na vila de Gita e era reputado por suas habilidades de
mago (daí seu codinome Mago). Durante o reinado de Cláudio (41-54, isto
é, dez anos depois da crucificação) ele partiu para Roma, onde foi honrado
como um deus e até mesmo se erigiu uma estátua em sua homenagem. Os
samaritanos já o haviam reconhecido como um deus.
Simão Mago viajava com uma mulher chamada Helena, uma ex-prostituta
da cidade fenícia de Tiro, a quem ele chamava de Primeiro Pensamento
(Ennoia), a Mãe de Tudo. Isso tinha origem em suas crenças gnósticas: ele
ensinava o "primeiro pensamento" de Deus - exatamente como a idéia
judaica da Sabedoria/Sofia discutida anteriormente - havia sido feminino, e
que fora ela quem criara os anjos e outros semi-deuses, que são os deuses
deste mundo. Eles criaram a Terra sob as instruções dela, mas se rebelaram
e a aprisionaram na matéria, no mundo material. Ela ficou presa em uma
série de corpos femininos (incluindo o de Helena de Tróia), cada um dos
quais sofrendo insuportáveis humilhações, terminando por fim como uma
prostituta em um porto de Tiro. Mas nem tudo estava perdido, porque Deus
também estava encarnado, na forma de Simão. Ele a procurou e a resgatou.
O conceito de um sistema cosmológico que compreendia uma série de
mundos e planos superiores e inferiores é bastante conhecido hoje em dia.
Embora os detalhes precisos variem, é uma crença gnóstica comum que
chegou até os cátaros no período medieval e permeia a cosmologia
hermética, que é a base do ocultismo ocidental, passando pela alquimia até
o hermetismo da Renascença. Existem também espantosos e exatos
paralelos com outros sistemas que já discutimos. O mais significativo é a
semelhança com o gnosticismo copta do Pistis Sophia, no qual Jesus sai em
busca da aprisionada Sofia, uma figura explicitamente vinculada nesse texto
a Maria Madalena. (Simão também chamava Helena de sua "ovelha
desgarrada".)
A personificação da Sabedoria como uma mulher - e uma meretriz - já é
algo com que estamos familiarizados nesta investigação e que a atravessa
por inteiro. No caso de Simão, essa incorporação era literal, na pessoa de
Helena.
Como escreve Hugh Schonfield:
...os simonianos veneravam Helena como Atenas (Deusa da Sabedoria),
que por sua vez era identificada no Egito com Ísis.
Scholfield também associa Helena e Sofia com Astarte.
Karl Luckert também remonta até Ísis o conceito de Simão, da Ennoia
encarnada em Helena. Geoffrey Ashe concorda, acrescentando: "[Helena] é
colocada de volta no caminho da glória como Kyria ou rainha celestial".
Uma outra fonte apócrifa, datando de cerca de 185, diz que Helena é "negra
como uma etíope" e dança com correntes, acrescentando: "Todo o poder de
Simão e de seu Deus está nesta mulher que dança".
Irineu escreve que os sacerdotes iniciados por Simão "viviam na
imoralidade", embora, infelizmente, ele não se aprofunde muito nisso. Mas
eles com certeza praticavam rituais ligados ao sexo, como revela Epifânio
em sua obra monumental Against Heresy:
E ele prescrevia os mistérios da obscenidade e... as emissões dos corpos,
emissionum vironum, feminarum menstruorum, e que eles deveriam colher
os mistérios na mais asquerosa das coletas.
(G.R.S. Mead, como bom vitoriano, deixou essa pudica tradução com as
frases em latim, mas parece que a seita de Simão utilizava a magia sexual,
envolvendo sêmen e sangue menstrual.)
Os padres da igreja ficaram profundamente temerosos de Simão Mago e sua
influência. Parece que ele representou uma séria ameaça para os primórdios
da Igreja - o que é um tanto estranho, até que se perceba o quanto Simão
tinha em comum com Jesus.
Os padres fizeram muito esforço para mostrar que, embora Simão e Jesus
dissessem e fizessem muitas coisas semelhantes, incluindo milagres, a fonte
de seu poder era muito diferente. Simão agia através de feitiçaria, enquanto
Jesus agia pelo poder do Espírito Santo. Com efeito, Simão era uma paródia
satânica de Jesus. Encontramos, por exemplo, Hipólito afirmando
asperamente sobre Simão: "Ele não era Cristo"
Epifânio revela mais ao escrever:
Desde a época de Cristo até a nossa, a primeira heresia foi a de Simão, o
mago, e embora não fosse corretamente e distintivamente uma heresia de
nome cristão, no entanto provocou grande devastação pela corrupção que
gerou entre os cristãos.
Além disso, de acordo com Hipólito:
... Ao comprar a liberdade de Helena, ele assim ofereceu salvação aos
homens através do conhecimento peculiar de si mesmo.
Um outro relato credita a Simão a capacidade de realizar milagres, inclusive
transformar pedras em pão. (Isto nos remete à Tentação de Jesus, quando é
oferecido a ele o mesmo poder, mas ele recusa. Entretanto, nos é dito mais
tarde que Jesus alimentou cinco mil pessoas com apenas cinco pães e dois
peixes, o que é praticamente a mesma coisa.)
Jerônimo extrai a seguinte citação de uma das obras de Simão:
Eu sou a palavra de Deus, eu sou o glorioso, eu sou o Consolador, o
Todo-Poderoso. Eu sou o próprio Deus.
Em outras palavras, Simão se auto-proclamava divino e prometia a salvação
a seus seguidores.
Nos Atos Apócrifos de Pedro e Paulo, Simão Mago e Pedro se engajam em
uma disputa para ver quem conseguiria trazer um defunto de volta à vida.
Simão apenas consegue reanimar a cabeça, enquanto Pedro realiza o truque
perfeitamente. Existem muitos outros relatos nos textos apócrifos sobre
batalhas mágicas entre Simão Mago e Simão Pedro, todas terminando com
o triunfo do cristão. O que elas demonstram, entretanto, é que o primeiro
era tão influente que histórias tinham de ser inventadas com o intuito de
conter seu poder sobre as massas.
O mago não era um simples feiticeiro itinerante, mas um filósofo que
escrevia suas próprias idéias. Desnecessário dizer que os originais se
perderam, mas os padres da Igreja incluíram em suas obras algumas
extensas citações retiradas desses textos, com o propósito de cabalmente
condená-las. Esses fragmentos, contudo, revelam claramente o gnosticismo
de Simão e a ênfase na existência de duas forças opostas porém
complementares - uma masculina e outra feminina. Por exemplo, esta é uma
citação da sua obra Great Revelation:
Dos Eões universais saem dois ramos... um manifesta-se de cima, é o
Grande Poder, a Mente Universal dirigindo todas as coisas, o masculino, e
outra vinda de baixo, o Grande Pensamento, feminino, produzindo todas as
coisas. Acasalando-se um com o outro, eles se unem e manifestam na
Distância Média... aí está o Pai...
É Ele quem manteve, mantém e manterá o poder feminino-masculino no
preexistente Poder Ilimitado...
Aqui podemos ver reminiscências do hermafrodita alquímico, do andrógino
simbólico que tanto fascinava Leonardo. Mas de onde vinham as idéias de
Simão Mago?
Karl Luckert remonta as "raízes ideológicas" dos ensinamentos de Simão às
religiões do antigo Egito, e, ao que parece, eles refletem, e talvez ainda
perpetuem em forma adaptada, aqueles cultos. Embora, como vimos, as
escolas de Ísis/Osíris enfatizassem a natureza oposta e igual das duas deidades,
a feminina e a masculina, algumas vezes se considerava que ambas
se haviam mesclado no caráter e no corpo de Ísis. Esta ocasionalmente é
retratada com barba, e atribui-se a ela a seguinte frase: "Embora seja
mulher, tornei-me homem..."
Simão Mago e Jesus eram, no que tange aos primórdios da Igreja,
perigosamente parecidos em seus ensinamentos, razão por que Simão foi
acusado de ter tentado roubar o conhecimento dos cristãos. Essa é uma
admissão tácita de que seus próprios ensinamentos eram, de fato,
compatíveis com os de Jesus, talvez até mesmo parte do mesmo
movimento. As implicações relacionadas a isso são perturbadoras. Seriam
os rituais sexuais praticados por Simão e Helena, por exemplo, também
praticados por Jesus e Madalena? De acordo com Epifânio, os gnósticos
tinham um livro chamado As Grandes Questões de Maria, que pretendia
conter os ensinamentos secretos do movimento de Jesus, os quais tomavam
a forma de cerimônias "obscenas".
Pode-se ficar tentado a descartar tais rumores como sendo apenas fofocas
escandalosas e grosseiras, mas, como vimos, existem evidências de que
Madalena era uma iniciadora sexual na tradição da prostituta do templo,
cuja função era conceder aos homens a dádiva da horasis: iluminação
espiritual através do ato sexual.
John Romer, em seu livro Testament, explicita o paralelo:
Helena, a Meretriz, como os cristãos a chamavam, era a Maria Madalena
de Simão Mago.
Então, novamente, há uma outra ligação: a da provável origem egípcia. Karl
Luckert fala de Simão:
Como "pai de todas as heresias" ele deve agora ser estudado não apenas
como um oponente, mas também como um notável concorrente de Cristo no
início da igreja cristã, possivelmente até como um aliado potencial.. .
A partir do fato de terem uma herança egípcia comum, pode-se deduzir a
força da ameaça de Simão Mago. O perigo aumentava com a possibilidade
de que ele pudesse ser confundido com o próprio Cristo...
E Luckert vê um estreito paralelo no que ele acredita ser a real missão
desses dois homens. Ele reconhece a evidente dicotomia na pregação de
Jesus como uma mensagem essencialmente egípcia para um público judeu,
mas percebe a bastante próxima conexão entre a teologia hebraica original e
a do Egito. Ele diz, de Simão:
[Ele] ... Via como sua missão consertar... o que devia estar errado; mais
precisamente, a alienação da dimensão feminina de Tefnut-Mahet-Nut-Ísis
da divindade masculina.
Esse, é claro, é precisamente o motivo hipotético que apresentamos para a
missão de Jesus na Judéia e que é atribuído a ele no Levitikon. Luckert
conclui que Jesus se sobrepôs a Simão Mago apenas por ter chegado ao
extremo de incluir sua própria morte no quadro geral. A ênfase modifica-se
radicalmente, entretanto, quando se leva em consideração a idéia de que a
crucificação pode não ter terminado com a morte de Jesus.
Além dos paralelos com Jesus, há um outro fato inquietante, e para nós
revelador, sobre Simão: ele era discípulo de João Batista. E não só isso, ele
fora indicado por João para ser seu sucessor (embora, pelas razões dadas
abaixo, não devesse ser uma sucessão direta).
As implicações disso são estarrecedoras, pois Simão já era conhecido como
feiticeiro e mago desde antes da morte de João. Dificilmente se pode dizer
que o discípulo pôs suas manguinhas de fora depois que o guru puritano foi
tirado de cena. João deve ter conhecido e aprovado os ensinamentos de
Simão. E se Simão era membro do círculo interno de João, ele aprendeu sua
magia com o próprio Batista, bem como outros discípulos em posição
similar. Assim como Jesus...
O que se segue foi extraído das Considerações Clementinas, século III:
Foi em Alexandria que Simão aperfeiçoou seus estudos sobre magia, sendo
adepto de João, um Hemerobatista ["Dia-Batista": pouco se sabe sobre esse
termo], através de quem ele veio a envolver-se com doutrinas religiosas.
João era o precursor de Jesus...
... De todos os discípulos de João, Simão era o favorito, mas quando da
morte de seu mestre ele estava ausente, em Alexandria, e então Dositheus,
um condiscípulo, foi escolhido como chefe da escola.
Esse relato também adentra em razões numerológicas confusas para
explicar por que João tinha trinta discípulos - provavelmente apenas no
círculo interno -, embora fossem na verdade vinte e nove e meio porque um
deles era uma mulher que não contava como pessoa inteira. Seu nome era
Helena... Isso é interessante porque sugere, nesse contexto, que se tratava da
Helena de Simão Mago, e que ela, também, fora discípula de João. Tudo
isso nos deixa com a inquietante sensação de que o Batista, que sempre fora
tido como um asceta puritano, um tipo de monge, era de fato
completamente diferente.
Quando Simão retornou de Alexandria, Dositheus entregou-lhe a liderança
da Igreja de João, não sem lutar porém. Mais uma vez, a cidade egípcia de
Alexandria é importante nessa história, provavelmente porque foi lá que os
principais protagonistas aprenderam sua magia.
Dositheus também tinha uma seita com seu nome, que sobreviveu até o
século VI. Orígenes registra:
... um certo Dositheus dos samaritanos chegou dizendo que era o Cristo
profetizado: desde aquele dia até hoje existem dositeanos, que escreveram
as palavras de Dositheus e também alguns relatos sobre ele, de modo que
ele não conheceu a morte, mas ainda vive.
Os seguidores de Simão continuaram a existir até o século III. Seu sucessor
imediato foi um certo Menandro.
Os dositeanos "veneravam João Batista" como o "mais justo dos professores...
dos Últimos Dias". Contudo, tanto a seita de Dositheus quanto a de
Simão foram erradicadas pela Igreja.
A implicação óbvia é de que João Batista não era o pregador ocasional de
uma plebe ignara: ele era o cabeça de uma organização, sediada em Alexandria.
Como vimos, os primeiros prosélitos do movimento de Jesus
surpreenderam-se ao descobrir uma "Igreja de João" em Éfeso, lá erigida
por Apolo de Alexandria. Essa metrópole foi também a base de Simão
Mago - o sucessor oficial de João e um conhecido rival de Jesus -, que
também era samaritano. Curiosamente, os cristãos veneraram a suposta
tumba do Batista em Samaria até que fosse destruída no século IV pelo
imperador Juliano, o que no mínimo sugere uma antiga tradição ligando
João Batista a essa terra. (Talvez a parábola do Bom Samaritano fosse na
verdade uma astuta tentativa de apaziguar os discípulos de João ou de
Simão Mago.)
Entretanto, não há qualquer indicação de que Simão era judeu, nem mesmo
originário da Samaria. Mesmo nos mais virulentos ataques a ele dirigidos,
os padres da Igreja nunca o atacaram por ser judeu, e dada a violência com
que os judeus foram acusados pelo assassinato do Filho de Deus, através
dos séculos, isso é particularmente interessante. Como vimos, João pregou a
não-judeus e atacou o culto do Templo de Jerusalém, a própria fundação da
religião judaica. Ele tinha, com toda a probabilidade, fortes ligações com
Alexandria, e, o que é ainda mais significativo, seu sucessor também era um
gentio. Tudo isso sugere que o próprio João não era judeu e que estava
familiarizado com a cultura egípcia.
É particularmente estranho que os primeiros padres da Igreja, entre eles
Irineu, tenham rastreado as origens das seitas "heréticas" justamente até
João Batista. Afinal, os Evangelhos o têm como alguém que inventou o
batismo e que viveu, a bem dizer, apenas para preparar o caminho para
Jesus. Mas saberiam eles a verdade sobre João? Teriam percebido que ele
não era o precursor mas um encarniçado rival, venerado ele próprio como o
Messias? Teriam reconhecido o fato aterrador de que João não era, de modo
algum, um cristão?
Os autores dos Evangelhos com efeito tiveram sua vingança contra João.
Eles o reescreveram e, no processo, "o subjugaram" e reposicionaram, de
modo que aquele que um dia fora rival - talvez até inimigo - de Jesus agora
é visto como alguém que se prostrou em reverência à sua divindade. Eles
eliminaram os verdadeiros motivos, palavras e ações de João e os
substituíram por outros que se encaixavam na imagem que deliberadamente
criaram de Jesus e seu movimento.
Como propaganda, esse artifício foi extremamente bem-sucedido, embora
parte do sucesso se deva à tendência inicial da Igreja em responder a
qualquer questão" herética" com torturas e fogueiras. A história cristã que
em confiança aceitamos hoje é resultado do antigo reinado de terror da
Igreja, bem como da propaganda dos Evangelhos.
No entanto, longe da maligna influência da Igreja estabelecida, alguns dos
seguidores de João fielmente o mantiveram em sua memória como o
"verdadeiro Messias" vivo. E eles existem até hoje.