Krak dos Cavaleiros

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Bernardo de Claraval



-Há alguns dias atrás passei pela experiência de um estranho sonho de que desejo dar-vos notícia.
Assim falou Bernardo de Claraval ao capítulo dos Templários reunido a seu pedido numa das salas da abadia cisterciense de Claraval.

-Nesse meu devanear pelos sombrios caminhos da noite vi-me transportado à beira de uma alta falésia frente ao imenso oceano. Logo soube (ignoro por que artes do sonho) que me encontrava na extrema costa ocidental da Ibéria, no antigo país dos Lusitanos, terra que no entanto me era desconhecida.
Diante de mim estendia-se, sob o sol enlouquece dor de luz, esse mar incógnito que tanto temor infunde nos marinheiros. Trazido pelo rijo vento do largo, mesclando com mil vozes da natura, um urgente apelo atraí-me para o horizonte distante. Mas outra força poderosa retinha-me, puxava-me para o interior das terras. E nessa contenda vacilava o meu corpo e mais ainda a minha alma!
Foi então que vi, ou me pareceu ver, erguerem-se, por breves momentos, na neblina do horizonte, as torres brancas de uma cidade prodigiosa, que, no mesmo instante, reconhecia não poderem ser outras senão as da capital da malograda Atlântida, cujo destino funesto tão vivida mente nos evocou o sábio Platão. Fascinado, dei alguns passos em frente, lançando-me no abismo que se abria a meus pés, mas estranhamente nenhum terror me invadiu, como seria natural, pois me encontrei a voar suavemente em direcção a essa visão fugaz, indiferente ao tumulto dos elementos.
À medida que ia vogando tudo se desvaneceu e tornou um tom avermelhado. Pouca a pouco fui despertando. Encontrando-me finalmente deitado na minha cela por cuja estreita janela um raio do sol nascente vinha tocar-me nos olhos. Uma nostalgia profunda desses momentos ímpares me habita ainda o espírita passados tantos dias ....
Que pensais de tudo o que acabo de vos contar?
Após um prolongado silêncio o mestre da ordem falou assim:
-A meu ver, senhor, esse vosso sonho toma o aspecto de um aceno do destino. Um destino ligado a esse extremo da Ibéria e que parece apontar para a demanda de uma Atlântida simbólica ou de misterioso! Também se me afigura que a força que vos retinha viria do coração da Hispânia, dessas nações que estando naturalmente tão empenhadas nas guerras de reconquista muito pouco dispostas se viriam em lançar-se nos perigos e incertezas de tão grande esforçada aventura marítima.
Talvez o significado profundo do vosso sonho seja que tal gesta não será possível se não houve nessa faixa ocidental da península uma nação independente, toda voltada para o mar, que possa assumir a realização de tão grandioso objectivo.
-tocaste num ponto importante, meu amigo - replicou bernardo
-e sabei quanto os vossos pensamentos estão bem perto das minhas próprias reflexões!
Pedindo a palavra um segundo cavaleiro disse então:
-Sabemos senhor, que existe nessa terra ocidental um príncipe, D.Afonso e um povo que anseiam por se tornarem independentes.
Porque não irmos ao encontro desse desejo e usando nossa forte influência favorecemos aí o nascimento de uma nova nação?
-trabalhosa tarefa, que pode exigir todo o esforço e valor que em nós pudermos encontrar, mas sedutora -retorquiu o abade após uns momentos de reflexão.
Foi nesse momento que um terceiro cavaleiro, profundo conhecedor de questões de geometria simbólica, se ergueu lentamente da sua cadeira e com um olhar intenso que parecia fintar um horizonte longínquo, muito para além das espessas paredes da abadia, assim falou:
-Quantas vezes já sonhei acordado com tal possibilidade! Deixa-me dar um alvitre, fruto de certas ideias que há muito me acalentam o espírito. A terra é um ser vivo, forças obscuras a percorrem. Podemos canalizá-las, pô-las do nosso lado. Porque não tentarmos envolver essa nova nação no escrímio estimulante de um recinto sagrado, à terra bem ligado sob o olhar benevolente dos astros?
Talvez usando mesmo aquela forma que é para nós é tão sagrada, o místico duplo quadrado.
Talvez assim, sob nossa orientação discreta, melhor se vá cumprindo o vosso sonho, as portas se abram do mar desconhecido aumente-se o mundo, a Humanidade nele e o divino nela!
Um murmúrio de aprovação acolheu estas palavras, ao que Bernardo correspondeu dizendo:
-Bem me parece que foi os céus que falaram por vossa boca! Assim vos dou a incumbência de gizares um plano detalhado que traduza essa bela ideia. Por nossa parte tudo faremos para torná-la realidade, mesmo sabem do que grandes trabalhos e dificuldades nos hão-de surgir pelo caminho. Mas não é esse, afinal, o modo de caminhar que mais fundo nos cala na alma?

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

GUERREIROS VIKING


Recentemente vem ocorrendo um grande resgate da cultura Viking.
Dezenas de livros, documentários, eventos acadêmicos e descobertas arqueológicas vem demonstrando o valor da Escandinávia para o estudo da formação do Ocidente Medieval e Moderno, bem como a desmitificação de muitos estereótipos e fantasias.
[1] Dentre todas as áreas de investigação algumas das mais promissoras são os estudos de mitologia e religião pré-cristã, extremamente importantes para se entender o posterior processo de estruturação da mentalidade religiosa na Europa.
Uma das mais famosas pesquisadoras de mitologia germânica é a inglesa Hilda Davidson, autora do clássico Gods and Myths of Northern Europe, originalmente publicado em 1964 e que agora recebe a primeira tradução para a língua portuguesa.[2] Esta obra se tornou um marco das investigações na área, tanto por seu caráter sistematizador quanto pela utilização de diversos tipos de fontes, sejam elas históricas (documentos e livros de caráter nobiliárquico/institucionais), literárias, epigráficas, iconográficas e arqueológicas. A obra é dividida em oito capítulos, seguidos de uma interessante relação de referências onomásticas e de um índice remissivo.
No início da obra Davidson discute suas vinculações teóricas e influências metodológicas. Partidária de Mircea Eliade e Georges Dumézil, a autora defendia o estudo do mito para o entendimento da sociedade, da estrutura política e cultural dos povos durante a História. Para ela, somente o estudo comparado do mito poderia fornecer elementos para os pesquisadores contemporâneos conseguirem entender a motivação e o significado simbólico destas narrativas para as sociedades antigas. Assim, Davidson realizou um estudo comparativo do panteão escandinavo com as formas míticas mais antigas, como os germanos do período das migrações, procurando encontrar padrões em comum entre os simbolismos míticos destas sociedades.[3]
No primeiro capítulo, O mundo dos deuses do Norte, a autora discute questões genéricas relacionadas com as fontes sobre a mitologia germânica: a poesia dos skålds na Escandinávia pagã, a questão da influência do referencial cristão na literatura do período pós Era Viking, as estruturas míticas da Edda em Prosa e Poética. Trata-se de uma parte essencial para aqueles que ainda não tem um conhecimento detalhado sobre a temática, tanto quanto uma importante introdução na crítica de fontes manuscritas da Idade Média (heurística medieval).
O segundo capítulo, Os deuses da batalha, dedica-se à interpretação dos cultos religiosos relacionados ao mais importante deus do panteão germano-escandinavo, Óðinn (Odin). Aqui, a autora inclui-se em uma interpretação historiográfica muito importante na medievalística nórdica, a de que os cultos no mundo germânico não eram centralizados, sem organização de uma instituição central, não hierarquizados, sem uma fé comum, variáveis conforme a região e a classe social.[4] O deus Óðinn era o mais cultuado pelos nobres e reis (konungars), sendo por isto mesmo a principal divindade na literatura escandinava, associado com a magia e a guerra. Seu culto estava associado com sacrifícios violentos e personagens marciais como as valkyrjor (valquírias), as virgens condutoras dos guerreiros mortos em batalha para o palácio de Valhöll (Valhala, “salão dos mortos”).
Outro destaque na interpretação da autora é para os berserkir (“os que portam camisas de urso”), guerreiros fanáticos dedicados ao culto de Óðinn, utilizados amplamente como mercenários e guardas de elite na Escandinávia da Era Viking. Este mesmo deus volta a ser interpretado em outro capítulo do livro (Os deuses dos mortos), onde Davidson dedica-se a resgatar aspectos relacionados com funerais e magia, inclusive analisando a figura de Óðinn como xamã.[5] Outra importante questão enfocada pela autora é a disputa entre algumas crenças religiosas nas sociedades nórdicas, especialmente entre os cultos odínicos e os relacionados à fertilidade.[6]
O próximo capítulo, O deus do Trovão, dedica-se ao estudo da mais popular deidade entre os Vikings, Þórr (Thor). Herói relacionado na luta contra as forças do caos e especialmente vinculado com fenômenos atmosféricos e árvores, este deus foi o favorito dos camponeses e agricultores, a exemplo dos colonos da ilha da Islândia.
As divindades relacionadas com a fertilidade são resgatadas no capítulo 4 (Os deuses da paz e da abundância). O deus Freyr, associado com os reis, e sua irmã Freyja são os mais importantes. Freyja recebia importantes cultos mesmo após a introdução do cristianismo na Escandinávia, além de possuir toda uma série de mitos associados com a vida após a morte dos guerreiros. Também Freyja era envolvida com um tipo de magia conhecida como seiðr (“canto”), possivelmente influenciada pelo xamanismo lapônico e que era utilizado para fins proféticos, curativos e de fertilidade ou prosperidade da comunidade em questão. O seiðr também foi representado nas fontes literárias como uma magia negativa, utilizada para fins maléficos ou destrutivos. Assim, a deusa Freyja possuía dois aspectos principais tanto na religiosidade quanto no pensamento mitológico: relacionada aos princípios de perpetuação das famílias e outro mais terrível, ligado à morte.
Algumas divindades mais obscuras e pouco conhecidas foram analisadas por Hilda Davidson em outro capítulo (Os deuses enigmáticos), como Baldr, Bragi, Íðunn, Mímir, Forseti, e especialmente Loki. Este último deus foi uma figura extremamente complexa, enigmática, sinistra e, às vezes cômica, especialmente citado e representado iconograficamente pelas fontes do período cristão, associado diretamente com Satanás. Por sua vez, o deus Baldr foi interpretado por Davidson a partir de uma perspectiva diferenciada. Não existem evidências de um antigo culto a Baldr antes da Era Viking, o que leva alguns pesquisadores a afirmarem que foi um mito criado pelo cristianismo, ou como sugere a autora, um antigo herói que foi divinizado.
O capítulo O começo e o fim apresenta algumas considerações sobre cosmogonia (a criação do universo e dos seres) segundo a mitologia germânica, além das concepções escatológicas (o fim dos tempos). Assim como para muitas crenças de origem indo-européia e euro-asiáticas, os Vikings acreditavam que a estrutura física do universo e mesmo as noções de tempo e destino, estavam intimamente relacionadas com uma árvore, denominada de Yggdrasill. O mais interessante porém, fica por conta das narrativas do fim do mundo, conhecidas por Ragnarök, onde todos os principais deuses morrem. Neste momento específico, Davidson rompe com muitos pesquisadores, negando a influência do referencial cristão na elaboração destas narrativas, que para ela teriam conotações essencialmente paganistas.
A última parte do livro é A despedida dos antigos deuses, um balanço acerca das características gerais da religiosidade nórdica e do período de transição para o cristianismo. Parte dos elementos míticos e religiosos dos Vikings era relacionados com o ambiente geográfico em que viviam, ou mesmo explicado por ele, enquanto que o restante foi intimamente ligado às estruturas jurídicas, políticas e econômicas da sociedade nórdica. Um momento muito interessante é a discuss ão que a autora estabelece acerca do público dos mitos: a receptividade das narrativas orais dependia da classe social e da região em que a mesma foi propagada. A falta de uma organização central favoreceu a variação de cultos e crenças. Para a autora, o individualismo da religiosidade Viking foi a maior causa de seu declínio com a chegada da nova fé, o cristianismo. Com a mudança do estilo de vida dos homens nórdicos, a partir do século X, o paganismo já não oferecia os mesmos vínculos sobrenaturais, confortos materiais e satisfações cotidianas que antes.
Infelizmente a obra apresenta diversos problemas de editoração. Em primeiro lugar, a tradução cometeu muitos erros como “Palácio dos derrotados” (a tradução mais correta do inglês para o português seria ‘salão dos que morreram em batalha’, p. 206); “Oseburg” (o correto é Oseberg, p. 114); “Destruição dos poderes” (Consumação dos destinos dos poderes supremos, p. 203); “100 d.C.” (na realidade seria século IX d.C., p. 115); “Odim (...) perfurado por uma espada” (Gungnir é uma lança, p. 122); “deflagrando” (inaugurando, p. 146); “eterna representação” (eterno retorno, p. 172); “um tanto patética” (um tanto estranha, p. 81). Algumas frases traduzidas não tem sentido nenhum, como em “A serpente mundial, enrolada ao redor da terra, embaixo do mar, que é uma mudança livre em Ragnarok” (p. 201). O correto seria traduzir a última frase por: liberta-se no Ragnarök. Erros de impressão permeiam toda a obra, como “poeterior” (posterior, p. 55), “durane” (durante, p. 166), sepente (serpente, p. 201). O tradutor também não seguiu nenhum critério para a transcrição de termos do nórdico antigo, pois enquanto a obra original conserva os mesmos, a edição brasileira optou por adaptar alguns (como Odim, que na maioria das adaptações ao português é Odin; Frei, o correto seria Freir ou Freyr; Tor, a grafia mais recomendada seria como nas línguas germânicas modernas, Thor), enquanto que em outras ocasiões as palavras permaneceram na versão original (a exemplo de seiðr, seiðkona, Niðhøggr, Yggdrasill).
Esperamos que outras importantes obras relacionadas com a História e a mitologia da Escandinávia futuramente venham a ser traduzidas em língua portuguesa, mas que tenham uma editoração e tradução muito mais criteriosa, não somente beneficiando os pesquisadores de medievalística, mas também a todos os que tem interesse em estudos de sociedades e culturas históricas em geral.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Deus - Uma biografia

Deus - Uma biografia
Pesquisadores revelam que Javé, o grande personagem da Bíblia, não foi visto sempre como Deus único. Antes do Livro Sagrado, ele era só mais um entre muitas divindades. Saiba como Deus conquistou seu espaço no céu. E na Terra
Deus criou o Universo.
Deus está em todos os lugares.
Deus é a força que nos une.


Cada sociedade vê a figura do Criador à sua maneira. Cada indivíduo, até. Para Einstein, Ele era as leis que governam o tempo e o espaço - a natureza em sua acepção mais profunda. Para os ateus, Deus é uma ilusão. Para o papa Bento 16, é o amor, a caridade. "Quem ama habita Deus; ao mesmo tempo, Deus habita quem ama", escreveu em sua primeira encíclica.

Pontos de vista à parte, toda cultura humana já teve seu Deus. Seus deuses, na maioria dos casos: seres divinos que interagiam entre si em mitologias de enredo farto, recheadas de brigas, lágrimas, reconciliações. Os deuses eram humanos.

Mas isso mudou. A imagem divina que se consolidou é bem diferente. Deus ganhou letra maiúscula na cultura ocidental. Os panteões divinos acabaram. Deus tornou-se único. É o Deus da Bíblia, Javé, o criador da luz e da humanidade. O pai de Jesus. Essa concepção, que hoje parece eterna, de tanto que a conhecemos, não nasceu pronta. Ela é fruto de fatos históricos que aconteceram antes de a Bíblia ter sido escrita. O próprio Javé já foi uma divindade entre muitas. Fez parte de um panteão do qual não era nem o chefe. O fato de ele ter se tornado o Deus supremo, então, é marcante: se fosse entre os deuses gregos, seria como se uma divindade de baixo escalão, como o Cupido, tivesse ascendido a uma posição maior que a de Zeus É essa história que vamos contar aqui. A história de Javé, a figura que começou como um pequeno deus do deserto e depois moldaria a forma como cada um de nós entende a ideia de Deus, não importando quem ou o que Deus seja para você.

Criança
No princípio, Ele não sabia falar. Só chorava, grunhia e balbuciava. Deus era uma criança. Uma não, muitas: um deus era a chuva, outro deus, o Sol, mais outro, o trovão... Os deuses eram as forças por trás de uma natureza inexplicável para os primeiros humanos da Terra. Facetas de divindades borbulhavam em cachoeiras, galopavam com os cavalos selvagens, voavam com o vento, escondiam-se em cada rochedo, bosque ou duna do deserto. E do deserto veio a que daria origem ao Deus para valer.

Deuses nasceram do pôquer. A crença em divindades provavelmente vem da capacidade humana de detectar as intenções das outras pessoas. Somos muito bons nisso desde que surgimos, há 200 mil anos, e precisamos ser mesmo, porque o Homo sapiens sempre levou a vida social mais complicada do reino animal, sempre em comunidades cheias de intrigas, fingimentos, traições. Saber o que se passa na cabeça do outro era questão de sobrevivência - e até certo ponto ainda é.

E a melhor maneira de tentar se antecipar a um adversário nos jogos mentais do dia a dia é imaginar as intenções dele: "O que será que ele pensa que eu estou pensando?" Nosso cérebro é uma máquina de pôquer.

Pesquisadores como o antropólogo francês Pascal Boyer defendem que esse sistema de detecção de intenções pode acabar aplicado a coisas que não têm intenções de nenhum tipo - como a chuva, ou o Sol. A ideia de que há espíritos de toda sorte da natureza seria, assim, um efeito colateral do nosso sistema de detecção de mentes, tão hiperativo.

Por esse ponto de vista, a espiritualidade faz parte dos nossos instintos. É quase tão natural acreditar em divindades quanto comer ou dormir.

Cada fenômeno da natureza, então, representava as intenções de alguma divindade. É como ainda acontece nas tribos de caçadores-coletores de hoje. Entre os índios tupis, os trovões são a raiva do deus Tupã. E fim de papo.

Obras de arte de mais de 30 mil anos atrás dão outra pista sobre essa espiri-tualidade primitiva - que podemos chamar de "infância de Deus" (no caso, dos deuses). Elas mostram seres que misturam características humanas e animais - sujeitos com cabeça de leão ou de rena e corpo de gente, por exemplo.

Acredita-se que essas criaturas híbridas representem um tipo de crença que ainda é comum nas tribos indígenas: a de que não haveria separação rígida entre o mundo dos humanos, o dos animais e o dos espíritos. Seria possível transitar entre essas esferas se você possuísse o conhecimento correto, e, em tese, qualquer falecido, seja pessoa, seja bicho, pode ter um papel parecido com o que associamos normalmente a um deus.

Os deuses abandonam de vez as feições animais quando os bichos se tornam menos importantes no nosso cotidiano. Foi precisamente o que aconteceu quando a agricultura foi criada, há 10 mil anos, no Oriente Médio. Graças a ela, montamos as primeiras cidades. E a nossa espiritualidade progrediria junto: acabaria bem mais centrada nas pessoas que na natureza selvagem.

Há sinais de que ancestrais mortos eram as grandes entidades com status divino nessas primeiras cidades. Um exemplo arqueológico vem de escavações em Jericó, uma das mais antigas aglomerações humanas, que hoje fica no território palestino da Cisjordânia. Os habitantes de Jericó enterravam o corpo de seus mortos, mas guardavam o crânio, que era recoberto com camadas de gesso e tinta, simulando o rosto humano. Assim preparada, a caveira talvez servisse de oráculo doméstico - uma espécie de deus particular para cada família.

Os artesãos de crânios de Jericó não tinham escrita - aliás, passariam mais de 5 mil anos até que essa tecnologia fosse inventada. Quando isso finalmente aconteceu, em torno do ano 2000 a.C., os deus ficaram bem mais sofisticados.

Entraram em cena criaturas ao estilo dos habitantes do Olimpo na mitologia grega. Em parte, alguns deles até eram mesmo personificações das forças da natureza, mas agora eles ganhavam personalidades e biografias complexas.

É aí que está a origem do grande personagem desta história: Javé, uma divindade que provavelmente começou como um deus menor, cultuado por nômades. Bem antes de a Bíblia ser escrita.
Cabeça de leão
Estátuas e pinturas de povos caçadores, que viviam nas cavernas da Europa há 30 mil anos, mostram figuras que misturam formas de homens e de animais. Tudo indica que esses foram os primeiros deuses a habitar a mente humana.

Jovem
O rapaz era uma divindade dos desertos do sul. Junto com seus poucos súditos, chegaria à pulsante Canãa, domínio do deus El, o altíssimo. Ao lado do soberano, a mãe de divindades e homens, Asherah, senhora de tudo o que é fértil, e seu sucessor, Baal, o deus que dava chuvas àquelas paisagens àridas. Tudo na santa paz. Eles só não imaginavam que Javé tramava a destruição deles.

Ele começou de baixo. Era só mais um deus entre vários outros de sua região. Só que na Bíblia Javé é identificado como o Deus único. Hoje, cogitar a existência de outras divindades que teriam convivido com o Senhor da Bíblia é um absurdo do ponto de vista religioso. Mas não do ponto de vista científico. Pesquisadores de várias áreas - arqueólogos, linguistas, teólogos - estão encontrando pistas sobre uma provável "vida pregressa" de Javé. Uma vida mitológica que ele teve antes de seu nome ir parar na Bíblia como o da entidade que criou tudo.

Onde pesquisar isso? A própria Bíblia é uma fonte. O Livro Sagrado não foi feito de uma vez. Trata-se de uma coleção de textos escritos ao longo de séculos. O Pentateuco, os 5 primeiros livros da Bíblia, foi finalizado por volta de 550 a.C. Mas há textos ali de 1000 a.C., ou de antes. E nada disso foi editado em ordem cronológica - em grande parte, a Bíblia é uma junção de textos independentes, cada um escrito em tempos e realidades diferentes.

Como saber a que tempo e a que realidade cada um pertence? Pela linguagem. Pesquisadores analisam as expressões do texto original, em hebraico, e vão comparando com a de documentos encontrados em escavações arqueológicas, cuja datação é fácil de determinar. Com esse método, chegaram a uma descoberta reveladora. Alguns poemas da Bíblia dão a entender que Javé era uma divindade de lugares chamados Teiman ou Paran - dizendo literalmente que o deus veio dessas regiões. E esses textos estão justamente entre os mais antigos - se a língua do livro fosse o português moderno, eles estariam mais para Camões.

Teiman e Paran eram lugares desérticos fora das fronteiras onde viviam os homens que escreveram a Bíblia. Não se sabe exatamente que regiões eram essas, já que os nomes dos territórios vão mudando ao longo dos séculos. "Mas arqueólogos supõem que essa região seja no noroeste da atual Arábia Saudita", diz Mark Smith, professor de estudos bíblicos da Universidade de Nova York. E isso diz muito.

Os autores dos primeiros textos da Bíblia viviam na antiga Canaã - uma região do Oriente Médio onde hoje estão Israel, os territórios palestinos e partes da Síria e do Líbano. Ali se formaram algumas das primeiras civilizações da história, há 10 mil anos. E por volta de 1000 a.C. já era um território disputado (como nunca deixou de ser, por sinal). Estava dividido numa miríade de tribos, as dos israelitas, a dos hititas, a dos jebedeus...

Apesar das rivalidades, todas tinham culturas parecidas. Reverenciavam o mesmo panteão de deuses, por exemplo. Mas Javé, pelo jeito, não era um deles. Teria sido importado das áreas mais desérticas do sul.

Outra evidência disso é a associação de seu nome com os chamados shasu. Shasu é um termo egípcio que significa "nômade" ou "beduíno". Algumas inscrições egípcias mencionam um "Javé dos Shasu".

Uma possibilidade, então, é que nômades do deserto teriam se incorporado às tribos israelitas, trazendo o novo deus com eles. Essa divindade se embrenharia no meio da grande mitologia desse povo: o panteão de deuses cananeus. Mas quem eram essas divindades? As melhores pistas a esse respeito vêm de Ugarit, uma antiga cidade encontrada durante escavações arqueológicas na atual Síria. Ela foi destruída por invasores em 1200 a.C., quando os israelitas ainda eram um povo em formação. As inscrições encontradas ali, então, servem como uma cápsula do tempo. Revelam o contexto cultural em que nasceu a mitologia israelita, mostra como era a mitologia dos antepassados dos escritores da Bíblia. E os deuses em que eles acreditavam seriam fundamentais para a biografia de Javé. O panteão de Ugarit é bem grandinho, mas algumas figuras se destacam. Há o pai dos deuses e dos homens, o idoso, bondoso e barbudo El; sua esposa, Asherah, deusa da vegetação e da fertilidade; a filha dos dois, Anat, feroz deusa do amor; e o filho adotivo do casal, Baal, deus da guerra e da tempestade que morre, ressuscita e derrota as divindades malignas Yamm (o Mar) e Mot (a Morte).

Muitos estudiosos especulam que as tribos is-raelitas originalmente tinham El como seu deus supremo. Afinal, o nome do povo bíblico também termina com o elemento -el. "Esse tipo de nome próprio, conhecido como teofórico (‘portador de um deus’, em grego), costuma dar pistas sobre o ente divino que o dono do nome venera", diz Airton José da Silva, professor de Antigo Testamento da Arquidiocese de Ribeirão Preto.

Mas os indícios a respeito de El vão além da nomenclatura. O deus cananeu também tem uma relação especial com os chefes de clãs, prometendo-lhes uma vasta descendência - exatamente o que Deus faria depois na Bíblia ao selar uma aliança com os ancestrais dos israelitas, Abraão, Isaac e Jacó. "El é o deus desses patriarcas", diz Christine Hayes, professora de estudos judaicos de Yale.
Deus do deserto
Javé pode ter sido uma divindade trazida do deserto por nômades que se embrenharam nas tribos is-raelitas, quando elas ainda estavam em formação na região de Canaã. Aí ele se junta aos deuses cananeus, como Baal e El, o altíssimo.

Adulto
"Israel é a minha herança", brada o impetuoso deus do deserto. Diante dele, a assembleia dos deuses de Canaã se sente cada vez mais intimidada. E, numa escalada de poder sem precedentes, o guerreiro chega a ser considerado idêntico ao próprio El como criador e governador do mundo. A própria esposa do antigo senhor dos deuses passa às mãos do novato.

Uma ameaça pairava sobre os deuses de Canaã. Era a ambição de Javé. O novo deus começou a buscar seu lugar entre as antigas divindades cananeias. E teve sucesso. Com sua personalidade forte, foi ganhando espaço dentro da mitologia israelita, tomando o terreno dos deuses criados pelos povos cananeus.

A maior prova disso está em outro texto poético dos mais antigos da Bíblia, o Salmo 82. Ele nos apresenta o chamado "conselho divino": uma espécie de Câmara dos Deputados dos deuses, na qual eles se reúnem para discutir assuntos importantes - um indício de que o Salmo foi escrito antes do próprio início da Bíblia, que já começa apresentando Javé como Deus único. A ideia, ali, é que El preside o conselho e seus filhos ou subordinados discursam. Lá, Javé aparentemente perde a paciência: "Deus se levanta no conselho divino,/em meio aos deuses ele julga:/"Até quando vocês julgarão injustamente,/sustentando a causa dos injustos? (...) "Eu declaro: embora vocês sejam deuses,/e todos filhos do Altíssimo,/morrerão como qualquer homem". Trocando em miúdos menos rebuscados: "Quem manda aqui sou eu".

É difícil dizer a que período da história israelita corresponde esse momento em que, na imaginação religiosa das pessoas, Javé começou a impor sua vontade perante os deuses cananeus. Talvez o fenômeno tenha a ver com a consolidação de Israel como povo distinto dos demais cananeus: a adoração a uma divindade unicamente israelita pode ter emergido como um elemento-chave nessa consciência "nacionalista" dos ancestrais dos judeus.

Para completar essa nova fase na vida do Senhor, que poderíamos chamar de começo da vida adulta, falta ainda um elemento crucial. Lembre-se do impe-tuoso deus guerreiro Baal. O que parece ocorrer, segundo Mark Smith e outros especialistas, é que Javé se "baaliza", virando uma mistura de El e Baal, com ligeira predominância do segundo.

As evidências: Javé e Baal estão associados a tempestades, vulcões, fogo e terremoto; ambos são guerreiros invencíveis que habitam o alto de montanhas (Baal vive no lendário monte Zafon, Javé, no Sinai). E a semelhança fica ainda mais detalhada.

Na tradição mitológica de Canaã, quem tinha triunfado contra Yamm, o deus caótico do mar, era Baal, mas os textos da Bíblia atribuem essa vitória - adivinhe só - a Javé. Mais sugestivo ainda: alguns Salmos parecem ter sido originalmente hinos a Baal que acabaram adaptados para o culto ao Senhor dos israelitas. Só que Javé vai muito além das intervenções típicas de Baal no mundo. Na mitologia israelita, sua grande vitória não é contra o mar, mas, sim, usando o mar como arma contra o faraó que tinha escravizado o povo hebreu no Egito. Escolhendo o profeta Moisés como seu emissário, conforme conta o livro bíblico do Êxodo, o novo deus guerreiro puniu os egípcios com uma sucessão de pragas e, como grand finale, destruiu "carros de guerra e cavaleiros" do faraó afundando-os no mar.

A diferença em relação a Baal é que o Senhor seria capaz de agir não só num passado mítico mas na própria história dos israelitas. Ele é literalmente "o Senhor dos Exércitos de Israel", aquele que promete a vitória em batalha em troca da fidelidade religiosa do povo. Daí em diante, Deus nunca deixa de ser, em grande medida, um guerreiro.

Além de herdar o trono de El na mitologia israelita, Javé também pode ter levado Asherah, a mulher do velho deus. Eis aí uma possibilidade para a qual a Bíblia não prepara seus leitores. Os profetas bíblicos vivem chiando contra o fato de que os israelitas estariam se "prostituindo" (metaforicamente, e talvez literalmente também, via orgias rituais) nos altares de Asherah. Mas inscrições achadas ao longo do século 20, como as de Kuntillet Ajrud, um pit stop de caravanas no deserto do Sinai, poderiam indicar que o deus e a deusa não eram inimigos, e sim um casal.

As inscrições, datadas em torno do ano 800 a.C., dizem coisas como "a bênção para ti por Javé de Teiman e sua Asherah". Seja como for, mesmo se o casamento ainda existisse, Javé logo optaria por um divórcio - daqueles litigiosos, barra-pesada, nos quais o pai joga os filhos contra a mãe.
Casal maior
Inscrições do do século 9 a.C. dão a entender que Javé tinha se casado com Asherah, a maior divindade feminina de Canaã. Era uma interpretação israelita da mitologia da região: o deus daquele povo tomava para si a esposa de El.

Homem feito
A última resistência da antiga assembleia divina parte de Baal. Sem pestanejar, Javé o elimina. Asherah tem o mesmo destino trágico. Daqui por diante ele estará sozinho nos céus. E alcança a serenidade. Hora de fazer as pazes com a humanidade. E um sacrifício.

Seu grande momento estava chegando. Era a hora da virada para Javé. Ele deixaria de ser mais um deus. E viraria o Único. No mundo real, esse momento teve data: foi a reforma religiosa introduzida por Josias (649 - 609 a.C.), rei de Judá. Antes, porém, um interlúdio político.

Àquela altura, a nação das tribos israelitas de Canaã tinha sido dividida em dois reinos. Um ao norte, o de Israel, e um ao sul, o de Judá. E o de cima havia sido derrotado e conquistado pelo Império Assírio.

Josias não queria o mesmo destino. E parte de seus esforços para fortalecer a unidade interna de Judá e resistir aos invasores foi uma maior centralização da vida religiosa do reino. Para isso, ele começou a transformar Javé no único deus adorado por seus súditos. Por decreto: destruindo altares a outras divindades, como El, Baal... E Asherah. Esse foi o divórcio.

Também é possível que date do reinado de Josias o ataque final dos fiéis de Javé ao culto a Baal, muito criticado pelos profetas dessa época. Para a maior parte dos israelitas, não era problema adorar a Javé e a Baal ao mesmo tempo. É que outra especialidade do antigo deus cananeu era a agricultura - ele mandava chuva para regar as colheitas. Até então, embora Javé tivesse tomado conta das funções guerreiras de Baal, nada indicava que ele também pudesse bancar o regador de plantas. Mas os profetas israelitas passam, então, a afirmar que o mandachuva era ele.

Essa expulsão definitiva de Baal do panteão explica o episódio do bezerro de ouro durante a passagem dos israelitas pelo deserto. Para quem não se lembra: o povo de Deus, cansado de esperar que Moisés volte do monte Sinai, constrói uma estátua de ouro de um bezerro (emblema de Baal). Tanto Moisés quanto Javé ficam enfurecidos, e milhares de israelitas morrem como punição pela infidelidade do povo.

As ideias de Josias marcariam para sempre a visão que temos de Deus. E mais ainda depois que esse rei acabou morto. Na geração dos filhos do monarca reformista, o reino de Judá seria riscado do mapa e Jerusalém, a capital, acabaria conquistada pela Babilônia. Mas a adversidade do povo teve o efeito oposto em sua fé. No mundo mitológico, Javé se fortalecia como nunca. Com a nação agora indefesa militarmente, era a hora de reafirmar que o deus da nação, ao menos, era todo-poderoso. Nisso os profetas israelistas diziam que só Javé tinha existência, vida e poder; os outros deuses eram meras imagens de pedra, metal ou madeira. Era nada menos que a inauguração do monoteísmo: um momento tão importante na história da espiritualidade quanto a adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano seria bem mais tarde. E era esse Javé único que iria para a Bíblia. E se tornaria a imagem de Deus no mundo ocidental.

Um Deus, agora, não só dos israelitas. Mas da humanidade inteira. O Deus que criou o mundo, que fez o homem à sua imagem e semelhança. E que, de certa forma, era a imagem e semelhança do Javé pré-Bíblia: o Deus guerreiro, militar, que pune com rigidez os erros de seus adoradores. O Velho Testamento está recheado de castigos divinos: dos mais leves, como transformar o fiel Jó, um milionário, em um mendigo, como um teste para sua fé, até o dilúvio universal - praticamente um restart no mundo depois de ter concluído que a humanidade não tinha mais jeito. A justificativa para tal comportamento está na própria história de Israel. A ideia era acreditar que os maus bocados pelos quais a nação passou nas mãos de assírios e babilônios eram provações divinas, que, se o povo mantivesse sua fé, tudo acabaria bem.

Mas Deus surge na Bíblia como algo mais complexo que um mero feitor. Usando os paralelos deste texto, seria como se Ele tivesse amadurecido depois que Josias e os profetas o aclamam Deus único. Javé fica menos humano, menos falível. Passa a ser uma entidade transcendental de fato. Começa a afirmar aos seres humanos que "os meus caminhos não são os seus caminhos" - a ideia hoje familiar de que Deus escreve certo por linhas tortas.

Mas o caráter divino só se completaria mesmo no século 1. O primeiro século depois de seu filho, quando o Novo Testamento foi escrito. É a metamorfose mais radical do guerreiro Javé. Encarnado na figura de Jesus, Deus apresenta uma nova solução para a humanidade. Em vez de castigar ou destruir os homens mais uma vez, decide purgar os pecados dos mortais com outro sacrifício: o Dele próprio. Morre o corpo do Deus encarnado, não o espírito divino. Este, agora mais sereno, continuou zelando por nós. E assim será. Até o fim dos tempos. E acaba assim a nossa história, certo?

Claro que não. A saga de Javé é só um dos reflexos de uma epopeia maior: a da humanidade buscando um sentido para a existência. Nesse aspecto, continuamos tão perdidos quanto os antigos que não sabiam por que o trovão trovejava ou o que as estrelas faziam pregadas no céu. Ainda não sabemos por que estamos aqui. E a única certeza é que vamos continuar buscando respostas. Seja o que Deus quiser.