Krak dos Cavaleiros

sábado, 4 de setembro de 2010

O CONCEITO DE DEUS

O CONCEITO DE DEUS







A doutrina básica de toda teologia é a uniformidade do conceito da natureza Divina de todos os homens. Se todos os homens pudessem perceber, estar igualmente cônscios dessa essência e, de igual modo, definir racionalmente, sua natureza e função, haveria uma unificação de todas as religiões. Infelizmente não é assim! Portanto, temos religiões, e cada religião tem seu Deus. Cada uma tem seus profetas que declaram estar divinamente inspirados e que legam aos seus seguidores um ideal de Deus obtido através de comunhão direta. Os ideais se chocam. Fanáticos combatem e denunciam os ideais uns dos outros.


É Deus um fator imperfeito? Está Ele avançando na direção de uma realização inevitável e perfeição final? Tal hipótese não seria aprovada pela teologia moderna, nem mesmo seria coerente com a concepção religiosa de um povo bárbaro. Ela depreciaria o reconhecimento da Sua supremacia e da Sua onipotência. Contudo, uma recapitulação da história da religião e um exame das doutrinas das seitas de hoje revelam uma semelhança espantosa com tal hipótese, devido à discrepância nas definições da natureza de Deus.


Verificamos que o esplendor atribuído a Deus pela teologia dos tempos atuais ultrapassa, em muitos aspectos, o de épocas passadas. Além disso, verificamos que Suas realizações de hoje são múltiplas em comparação com as que Lhe eram atribuídas em outras eras. Outrora, Ele possuía uma multiplicidade de formas, porém o homem agora o considera como uma única entidade e, mesmo, como uma inteligência impessoal que penetra tudo. Todavia, os credos e seitas modernas declaram ardorosamente que o Deus de ontem, de hoje e de amanhã é o mesmo. Asseguram, sim, que Ele é o único fator imutável num universo de mudança. Se Ele é imutável, perfeito e a excelência suprema, como podem os devotos reconciliar isto com a óbvia diferença de natureza atribuída a Ele por todos os que O reconhecem? Evidentemente, nem todas as concepções podem estar certas. Algumas têm de estar erradas.


Se um grupo de mentes humanas não pode interpretar corretamente o impulso Divino em sua própria natureza, então é possível que todos os homens possam, da mesma forma, errar. Em defesa dos devotos pode-se dizer que alguns percebem mais intimamente que outros o Divino em sua natureza, e sua percepção participa mais estreitamente da realidade Divina. Mas quem são eles? Que critério existe para garantir a precisão da percepção de Deus pelo homem? Sinceridade de propósito não é o suficiente para julgar a precisão da concepção que alguém tem de Deus. O homem, em seus esforços sinceros para convencer seu semelhante de que só ele ou sua seita contemplou a Deus e é o veículo para a Sua palavra, recorre às mais estranhas práticas fanáticas — práticas que em si depreciam a sublimidade de Deus, a sublimidade que a pessoa sente mais do que sabe. O que é de maior valor para o homem, o ideal de Deus, do qual ele tem de se esforçar por aproximar-se, ou a expressão daquele ideal numa forma composta de palavras?


Com muita freqüência, o ideal espiritual do homem, como o código moral que ele indulgentemente aceita, é uma herança. O Deus de seu pai e o Deus do pai de seu pai torna-se o bendito guardião das virtudes de uma vida superior. Ele aceita igualmente grande parte da intolerância e fanatismo que podem cercar a fé de seus genitores. Ele se ofende quando põem em dúvida qualquer uma das doutrinas da sua fé, ou de sua interpretação do Deus que aceitou. Não porque veio a conhecer aquele Deus e, através desse contato inefável, percebeu aquilo em que anteriormente apenas acreditava, mas simplesmente porque abala seu orgulho, seu ego humano, ter seu discernimento ou o discernimento dos seus correligionários desafiado.


O homem parece então tornar-se um membro presunçoso da religiosidade. Incontestavelmente, pode-se dizer que aceitou uma fé prescrita, que foi preparada para ele. Aceita um Deus, não como veio a conhecê-Lo, e sim como Ele foi preparado por outra pessoa para sua aceitação. Contenta-se em sentir-se satisfeito e garantido pela escolha justa da fé, mesmo quando seu vizinho possa dele divergir em toda doutrina de crença religiosa. Seu vizinho pode ser adepto de uma fé tão reconhecida e tradicional quanto a sua, mas tão diferente quanto o dia da noite. A incongruência não o aflige nem um pouco. Os reivindicantes insistentes das diferentes fés não o perturbam nem o fazem perceber que só pode haver UM DEUS e não os vários Deuses das múltiplas religiões.


Para tal indivíduo, Deus não é uma experiência pessoal, e sim um quadro ou ideal magnífico que foi transplantado para sua consciência. Ele não nasceu de um germe pessoal de pensamento, de uma percepção espiritual, ou da aspiração. Deus, para tal indivíduo, não é um guia ou Senhor Infinito, a quem se pode chamar de companheiro, mas apenas uma força estabilizadora. O conceito de Deus é apenas um meio de mantê-lo no caminho reto da sociedade. Ele pode mudá-lo quantas vezes queira. Enquanto este servir ao seu propósito, mostrar-se-á satisfeito em ir para a sepultura sem nenhum contato mais íntimo com esse Deus, que para si tomou.


Digo tomou para si porque certamente não desenvolveu esse Deus de dentro. Nenhum elogio cabe a esses homens ou mulheres, pois o tributo que eles prestam periodicamente ao participarem em numerosos ritos e ao apoiarem o ritual exotérico, não é fomentado primordialmente pela espiritualidade. A falta absoluta, na maioria dos casos, de um conhecimento do seu Deus e a maneira metódica da sua devoção são indicadoras de um temor inerente mais do que de algo nascido da inspiração. Deus tornou-se, para eles, um defensor de um grande código ético e moral. Eles O aceitam porque Ele é parte integrante da sua fé. O único impulso que os associa ao seu Deus é um temor da Sua Onipotência, que não conseguem compreender. Infelizmente, eles não vêem necessidade nem mesmo de uma compreensão. Simplesmente seguem os ditames teológicos da sua fé com seus dogmas e credos. É difícil, para os que meramente assim adquiriram Deus, ver a necessidade Dele. Vivem sua vida cotidiana tão completamente carentes de qualquer compreensão real das Suas múltiplas obras e da Sua inteligência que a tudo permeia, que nada sabem da sua verdadeira relação com Ele; mas O temem.


O homem jamais pode conhecer a Deus de fora para dentro, por mais cativante e magnificente que possa ser a descrição que lhe fazem, se carece, no íntimo, de sensibilidade a um impulso espiritual. O homem não pode aceitar o Deus definido por outro se a descrição não evoca, dentro dele, uma apreciação compreensiva. Os olhos de um artista e os de um físico podem ver o mesmo amanhecer, mas a idéia criada na consciência de cada um é diferente. O físico compreende a mecânica do que vê, a lei física que explica os fenômenos; o artista sente a harmonia da cor, seu equilíbrio, sua proporção e a alegria da verdadeira beleza que estimula a sensibilidade da sua alma. Cada um poderia compreender a idéia do que o outro percebe, mas nenhum dos dois teria a mesma sensação emocional para com aquela idéia como teria pela sua própria.


Para todo homem que é um teísta, Deus é o Summum Bonum, e ele esforça-se instintivamente por moldar sua vida de acordo com este bem Divino que vê na vida e na conduta humana. Este é o maior dever da religião — a definição do que constitui o bem na ação humana e em todas as coisas percebidas pelo homem. Devido a isto, a religião poderia ser facilmente unificada; mas quando ela tenta limitar Deus à forma, descrever Sua natureza, surge a confusão e, desse modo, também surgem os que se diz serem ateus.


A religião chamou a primeira causa de Deus, ou o equivalente em todas as línguas. Entretanto, como já dissemos, foram as diferentes características que a religião tem atribuído a Deus, em diferentes épocas, que causaram a confusão quanto à Sua natureza.


Vamos supor que a religião esteja certa, e que Deus é a primeira causa; neste caso, as coisas que procedem da primeira causa foram criadas intencionalmente ou por necessidade? Se a causa é intencional ou propositada, ela tem de ser da mente. A única comparação que temos para causas conscientes somos nós mesmos. Se Deus é uma causa intencional ou mente, Ele teria necessariamente certas características semelhantes às da mente humana. Ele teria a faculdade de percepção e, desse modo, perceberia a existência presente. Além disso, Ele teria de imaginar uma insuficiência que deveria ser superada, ou a necessidade de uma perfeição. Assim, esta primeira causa, se intencional, determinaria para si mesma certas finalidades a atingir, tal como o faz a mente humana.


Os devotos que assim raciocinam criaram para si próprios certos problemas ontológicos. Na verdade, estão dizendo, "Deus é a substância primária, na qual se diz que todas as coisas têm sua existência e, entretanto, também se diz que essas coisas são o cumprimento do Seu propósito". Logo, parece que, em determinado momento, as coisas que foi Sua intenção criar não eram da Sua substância. Evidentemente, algo que já é não teria necessidade de vir a ser. Será que Deus percebeu que Seu ser era incompleto ou imperfeito, e de que Ele precisaria tornar-se um ser com um objetivo e conceber um plano para superar tais condições? Aceitar tal raciocínio significaria que os propósitos ou finalidades Divinos, que Deus procurou, eram mais perfeitos em determinado momento do que Seu próprio Ser. Além disso, se Deus concebeu a falta de algo, de onde este viria se já não estava na substância do próprio Deus? Responder dizendo que Deus desenvolveu as finalidades que Ele percebeu da Sua própria natureza equivale a dizer que Deus era imperfeito e vinha evoluindo para a perfeição. Quando a religião oferece tal raciocínio, que garantias têm os mortais de que Deus não está ainda simplesmente evoluindo para a perfeição, e que portanto o Divino é agora imperfeito?


Para fazer face a esses problemas ontológicos, a religião criou um dualismo. Deus é um aspecto deste dualismo. Ele é absoluto, perfeito e completo em Si mesmo. Como Ele é concedido como uma mente, Ele também é onisciente. O outro aspecto é o mundo, isto é, todos os outros seres exceto Deus. Deus, como mente, atua sobre esta massa. Desenvolve e cria nela aquilo que serve à Sua própria vontade. Por meio deste raciocínio, a religião não resolveu os problemas que confrontava; em vez disso, criou outra tremenda brecha em seus argumentos. "Deus criou o ser", diz a religião. Assim, Deus criou algo menos perfeito que Ele próprio; pois embora este ser seja oriundo de Deus, a religião não admitirá que a matéria e as coisas de que nossa existência consiste sejam substância Divina.


O místico não pode aceitar um Deus pessoal. Ele não pode conceder a Divindade como de um ou outro sexo, nem possuidora de uma forma que seja compreensível para o homem, nem igual a qualquer coisa de que o homem tenha conhecimento. Para o místico, para Deus ser antropomorfo — isto e, ser feito a imagem do homem — equivale a dizer que a mente humana e finita é igual a uma realização que tudo abrange da natureza de Deus. Como é tão evidente que o homem ignora tantos dos aspectos do seu próprio ser, ele supor que tem o conhecimento completo da amplitude de Deus é, para o místico, um pensamento ímpio.


Além disso, raciocina o místico, pode Deus ser confinado pelos limites, pelas formas que a mente do homem é capaz de conceber? Para o místico, o universo e tudo o que existe tem de ser explicado ou como um fenômeno caprichoso e mecanicista, com uma ordem concebida pela mente do homem, ou como uma Inteligência Infinita, como causa originadora, com suas causas dependentes menores, que explica todas as coisas. Como o místico não é um agnóstico, aceita o princípio de uma causa inteligente, de uma Mente Divina, como força primária universal. Como supera ele as dificuldades que o devoto tem para explicar a relação entre uma mente-causa e o mundo físico?


Se Deus é mente, e portanto causativo, como se explica a matéria? Se a Mente Divina criou as substâncias grosseiras que os homens percebem e deram o nome de matéria, a partir de que esta mente as criou? Como, para o místico, a Mente Divina é um Ser Universal, ilimitado, que tudo abrange, não poderia haver nenhuma outra substância de onde ele pudesse criar propriedades físicas, matéria — e mesmo almas. Para o místico, uma crença de que o mundo físico, a substância material, foi gerada do nada, é incompatível com a natureza de Deus. Como Deus é tudo para o místico, não poderia haver qualquer condição ou estado negativo de nada em existência concomitantemente com Ele, ou além Dele. Se algo pode ser criado do nada, então o nada é alguma coisa. Se qualquer outra coisa existisse, então isso limitaria a natureza de Deus, pois pelo menos Deus não seria aquela coisa. Os fenômenos que os homens reconhecem como matéria, e que a ciência demonstra como tendo existência, devem, portanto, ter advindo de Deus, da Mente Divina. Se ela adveio de Deus, nunca foi realmente criada, pois teria sempre existido. Se esta Mente Divina constitui todas as realidades do universo, inclui tudo, ela deve ter existido sempre. Não poderia ter havido qualquer começo para a Mente Divina, pois de onde teria ela vindo? Como a Mente Divina é eterna, então o que é da sua natureza, ou as substâncias que fluem dela — realidades físicas, por exemplo — são igualmente eternas.


Logo, para o místico, a Mente Divina não criou a Terra, os mundos além, e todos os particulares materiais de que temos conhecimento. Sua essência, as radiações e energias de que são compostos são da natureza desta Inteligência Divina e sempre foram. Eles mudam, sim, tal como a própria mente está sempre ativa na mudança da consciência. Portanto, o verdadeiro místico é, decididamente, um panteísta; quer dizer, para ele Deus está em tudo, e em toda parte. Para o místico, a pedra, a árvore, o relâmpago, bem como o próprio homem, são parte de Deus. Estas coisas não são criações de Deus, são da natureza de Deus — a Mente Divina. Para o místico, isto simplifica um dos maiores problemas teológicos e filosóficos dos séculos — reconciliar o espiritual com o temporal. Como todas as coisas são partes da Mente Divina, não existe dificuldade em demonstrar uma relação entre duas condições que de ordinário são concebidas como diametralmente opostas. Por analogia, as trevas não são um estado positivo, como a luz o é; são apenas uma manifestação menor da luz.


Quer isto dizer que o místico tem a mesma adoração por uma árvore e uma montanha, por exemplo, que o devoto ortodoxo teria pelo seu Deus? O místico responde a esta pergunta indagando: "E onde está Deus?" Como Deus ou a Mente Divina, para o místico, é onipresente, a tudo permeia e está por toda parte, Deus, portanto, existe para ele em todas as coisas das quais ele tem consciência. Cada coisa que se manifesta o faz em virtude da inteligência de Deus, inteligência que constitui as propriedades da coisa que o homem percebe. O místico não vê um Deus remoto, numa região lendária, ou dentro dos limites de um templo ou de uma catedral ou num extremo do universo, mas, sim, em cada alento que aspira em seus pulmões, em cada pôr-do-sol e em cada ramo de flores.


Existe essa distinção — cada coisa que o místico percebe não é toda a Mente Divina, mas apenas uma das infinitas variedades de suas expressões. Por conseguinte, o místico não é aquele tipo de panteísta adorador da natureza. Como para o místico a Mente Divina tudo permeia, não há coisa única que represente toda a natureza Divina. Assim como a personalidade e as habilidades de um grande homem não podem ser conhecidas por qualquer uma das suas realizações isoladas, tampouco a Mente Divina pode ser concebida por um estudo de qualquer um dos seus múltiplos fenômenos. Como a Mente Divina tudo abrange, o místico compreende que sua devoção também tem de abranger tudo. Cada coisa da Natureza que o homem descobre é venerada pelo místico, como um membro, uma parte finita do infinito Ser Divino. Ele, portanto, não dedica seu amor espiritual a uma única coisa ou substância. Inversamente, nada, por piores que sejam seus efeitos sobre seu bem-estar, deve ser considerado inteiramente fora dos limites do Ser Divino.


Para os místicos de outrora, por duas razões Deus era considerado desconhecido. Primeira, a inteligência do homem era tão inferior que não lhe era possível compreender Deus em Sua inteireza ou realmente conhecer a Deus em qualquer sentido da palavra. Assim, o místico afirmava que o homem não deveria tentar usar o cérebro que era do corpo mortal para ponderar quanto à natureza de Deus ou tentar defini-Lo e dizer o que Ele é ou o que Ele não é, porque isto presumiria que a consciência do homem é capaz de abranger a idéia de Deus. Segunda, afirmava-se que o homem deve transcender e, mesmo, erguer-se acima do intelecto, porque o intelecto é do corpo; que se o homem ousa mesmo dizer que existe um Deus, está a sugerir que, intelectualmente, tem algum conhecimento da Sua existência.


O místico afirmava que o homem deve abandonar inteiramente qualquer tentativa de conhecer a Deus através da razão ou do intelecto; que ele deve, isto sim, entrar num estado de contemplação e meditação no qual liberte sua mente de qualquer concepção quanto ao que Deus é ou não é, e se permita ser absorvido no absoluto; isto é, na própria natureza de Deus. Quando for absorvido na natureza de Deus, ele terá uma sensação de serenidade e paz, e somente esta é a única realidade divina pela qual virá a sentir Deus e aproximar-se Dele. Quando dizemos que o homem tem de entrar num estado de contemplação e permitir que o eu seja absorvido, somos confrontados com o problema deste eu. O que é o eu? Qual é a sua conexão com a alma? Temos agora de examinar estas proposições.

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