Krak dos Cavaleiros

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A VIDA MÍSTICA

A VIDA MÍSTICA




No mundo das máquinas, diz-se que a eficiência implica na coordenação de todas as partes de uma máquina para alguma finalidade válida. Uma máquina complexa e eficiente, consistindo de engrenagens, eixos, êmbolos e rodas motrizes, tem de ter cada uma destas peças não só para funcionar ou estar em movimento, como também elas têm de concorrer para a finalidade para a qual a máquina foi criada. A eficiência desta consiste em cada parte contribuir para o todo, fazer algo para que a máquina cumpra sua finalidade; do contrário, se a máquina simplesmente funciona, se, apenas, opera e nada realiza, torna-se fruto do desperdício da energia da mente do projetista e de todas as mentes que contribuíram para a sua construção. E, também, desperdício de material valioso do qual se compõe.

Pois bem, se isto é válido no mundo das máquinas, o é muito mais em nossa vida individual. Portanto, na vida, a eficiência consiste da aplicação de nossa existência a algum propósito Cósmico que a justifique. Presumindo que cada um de nós é uma máquina, não basta que sejamos máquinas saudáveis ou que organicamente nossa função seja correta, ou que tenhamos e mantenhamos bastante energia e vitalidade (ou vigor, como se diz normalmente), mas que todas estas coisas sejam usadas para uma missão, para a finalidade para a qual fomos individualmente criados.

Por conseguinte, um aspecto da vida, e que é ignorado pela maioria das pessoas, é a vida mística. A vida mística proporciona a razão por que vivemos. A vida mística determina a causa da nossa existência individual e o uso que deveríamos dar ao nosso corpo e à nossa vitalidade e magnetismo animais. A vida mística, como a vida física, requer certo preparo. Se temos de estudar as regras da alimentação, se temos de estudar higiene, se temos de saber os rudimentos da boa saúde para sermos saudáveis e fisicamente normais, por certo, também, deveríamos dar alguma atenção e consideração ao lado místico de nossa existência. Também temos de nos preparar para ele de um modo inteligente.

Talvez o primeiro requisito no preparo para a vida mística seja abandonar todas as concepções populares sobre o que um místico deveria ser. O místico não é uma pessoa que se enquadre num padrão objetivo. Ele não tem um tipo determinado; isto é, não tem uma figura característica, como Papai Noel. O místico é aquele que adota determinada atitude mental. Como todo aquele que tem um ideal nobre, ele nem sempre o indica em si.

O místico é um homem — isto é, pertence à espécie Homo sapiens — como todos nós. Por conseguinte, é muitíssimo mortal, sujeito, às vezes, a todas as fraquezas e tentações de um ser humano. Tem, naturalmente, todas as variações físicas encontradas em qualquer ser, em meio à multidão que passa. Além disso, a vida mística não tem raízes raciais. O sangue asiático não pode produzir místicos maiores do que o pode o sangue que corre nas veias de um ocidental. É igualmente uma ilusão imaginar que a localização geográfica estimula a atitude mística da mente. Não existe atmosfera especial no Tibete, no Egito, na China ou na índia, capaz de impregnar de atributos místicos todos os que simplesmente lá residem.

Como o ouro, os elementos do misticismo estão onde quer que os encontremos — isto é, onde quer que os sintamos.

É bom acrescentar que os atributos do misticismo não são necessariamente herdados. As qualidades fundamentais estão latentes em todo indivíduo — em algumas pessoas elas podem produzir um fanático ortodoxo, insensível, na realidade, às doutrinas do misticismo. A compreensão um tanto singular da vida, que se diz que um místico tem, não é um dom Cósmico.

Em linguagem simples, a atitude mística da mente (que é mostrada) não é uma concepção Divina. O místico é uma pessoa que evoluiu; ele deve usar as faculdades que possui, despertando suas qualidades latentes, e dirigi-las para o canal que constitui a atitude mística da mente. Ã interpretação mística da vida não é um manto misterioso que baixa sobre um indivíduo e o distingue, propositadamente, dos outros homens.

Portanto, ao abraçarmos voluntariamente a vida mística, primeiro é necessário livrar nossa mente de todos os preconceitos e predisposições, das opiniões que formamos, das conclusões a que chegamos arbitrariamente, e especialmente do que ouvimos dizer. Temos de nos despir mentalmente, livrarmo-nos com firmeza do manto no qual nos envolvemos inconscientemente, por força do hábito, a cada ano que passa. Temos de libertar nossa mente de todos esses empecilhos e estar preparados para aceitar somente aquelas coisas que, como disse o famoso filósofo Descartes, despertam dentro de nós a sua aceitação intuitiva, uma sensação de que são verdades e que constituem conhecimento real.

Francis Bacon, eminente filósofo e, poderíamos dizer, o pai do nosso atual método científico, adotava esse método para chegar a fatos científicos. Declarou, certa vez, que o homem deveria despojar sua mente de todos os ídolos; das coisas que construímos erroneamente em nossa mente pela imaginação, pela suposição; libertar-se dos ídolos da tradição, das coisas que aceitamos porque nos foram transmitidas, ou porque têm simplesmente a autoridade da idade para apoiá-las. Temos de abordar a vida como se saíssemos pela primeira vez de uma sala escura para outra, iluminada, sem qualquer antecipação ou expectativa sobre o que iremos ver ou ouvir e, então, submeter cada experiência à nossa própria análise, sem colori-las com a análise alheia. Aquele que realmente deseja abordar a vida mística de um modo franco, na esperança de então ser capaz de governar-se adequadamente, não pode ser um covarde. Não deve temer a opinião pública; nem, tampouco, hesitar em combater ou desafiar a tradição.

Você já parou para pensar sobre o verdadeiro valor ou mérito da tradição? Quando se constitui um benefício para o homem e quando é para ele um estorvo? As tradições são como os degraus de uma escada. Representam a elevação do homem. Destinam-se a impedir que ele entre em decadência, mas não se destinam a detê-lo. Sempre que a tradição o mantém preso, de modo que o impeça de guindar-se ao degrau seguinte, transforma-se, então, num estorvo. Deveríamos encarar as tradições como sinais de encorajamento; deveríamos encontrar nelas uma satisfação devido ao progresso que o homem tem feito. Deveríamos tirar da tradição o melhor que ela tem a oferecer, e construir sobre ela. Por conseguinte, é necessário que cada um de nós tome as tradições da época e as submeta a um exame pessoal para verificar, no que nos diz respeito, por que é necessário que elas sejam mantidas. Se pudermos aperfeiçoar as tradições, deveremos fazê-lo. Se não pudermos, não devemos abandoná-las, a menos que se demonstre que elas não têm mais valor algum.

O ser humano é dotado de raciocínio, uma faculdade também encontrada em animais inferiores, e temos de empregar este poder. Não devemos ser como crianças e aceitar condições e circunstâncias, apenas, com base na fé; temos de ponderá-las. O homem ou a mulher que não emprega este poder da razão não progrediu além do nível da criança que foi. Na verdade, é seguro dizer que tais pessoas não evoluíram mais que um chimpanzé, que reage instintivamente ao seu ambiente tal como uma criança o faz, sem saber por que o faz, ou sem sequer estar preocupado com a razão pela qual o faz.

Em nossas considerações da vida mística, temos de começar com o homem, simplesmente porque não existe nada mais familiar, nada com o qual estejamos mais estreitamente relacionados, nada que possamos sentir ou analisar tão intensamente, tão atentamente, quanto nós próprios. Por que começar com uma análise ou um exame do universo que o cerca? Com os planetas no alto, ou outros corpos cósmicos, com as leis universais, ou com a realidade em geral? Afinal de contas, todas as coisas fora de nós mesmos são medidas em termos do seu valor ou relação conosco. As coisas que você vê, ouve, sente, saboreia e cheira podem ter existência fora de você mesmo, mas a forma como elas são percebidas e a maneira como você reage a elas dependem da sua interpretação das mesmas e das suas qualidades sensoriais. Portanto, já que você mede essas coisas que estão fora de si, em termos pessoais, é melhor começar por você mesmo.

Ao começar com o homem, você deve compreender que não só o homem é Divino. De uma certa forma, é lamentável que quase todas as religiões e filosofias tenham criado, com tanto vigor, a impressão da natureza Divina do homem que, na mente de muita gente hoje em dia, se robusteceu a idéia de que todas as coisas que não sejam o que elas chamam de a alma do homem são declaradas vulgares, praticamente indignas da consideração, exceto na medida em que precisamos delas para nossa existência. Mas tal conceito é uma injustiça para com a Inteligência Infinita que a tudo concebeu. Em primeiro lugar, deve-se concluir e compreender que, a profusão de coisas que existem à parte do que é declarado como sendo a alma do homem, não é criação do homem, e não é o resultado do esforço da sua mente. Por conseguinte, elas devem necessariamente ser originárias da mesma Fonte, aquela mesma Fonte Infinita de onde advêm todas as coisas. Portanto, tudo o que conhecemos vem, de acordo com este raciocínio, de uma Fonte Divina.

Também é lamentável que algumas pessoas se refiram aos atos dos animais e de alguns tipos de seres humanos, como sendo ímpios. Em cada coisa que existe foi instalada uma função, e, enquanto tenha esse tipo específico de existência em seu processo de desenvolvimento, aquela função lhe é natural e não é ímpia. Podemos censurar ou condenar um povo bárbaro ao esquecimento porque ele se comporta de acordo com a inteligência que lhe é própria? Deve ele ser considerado de natureza Divina porque não tem a capacidade de distinguir entre o certo e o errado que concebemos em virtude de uma inteligência maior e de um estado mais adiantado? Gostaríamos de ser considerados vulgares e ímpios por uma civilização daqui a mil anos, porque nossos atos de hoje estarão aquém das suas realizações? Não nos justificaríamos dizendo que agimos de acordo com o melhor do que se compunha a nossa natureza e do que constituía nossa inteligência anterior? Ser algum é ímpio, a menos que se possa mostrar que ele age erroneamente, tendo a capacidade de determinar a diferença entre o certo e o errado, portanto, cada classe de gente, hoje em dia, cada raça de pessoas, tem de ser medida pelo seu estado de adiantamento e ser considerada culpada somente com base nessa medição.

Um dos filósofos neoplatônicos (filósofos místicos medievais), anteriores ao Renascimento, declarou que o homem foi dotado de vontade somente para que pudesse escolher o curso certo de ação, para que pudesse seguir o que compreende ser certo e bom. O homem só é considerado culpado quando dirige aquela vontade em oposição à sua compreensão do que é bom e do que é errado.

Assim, quando abordamos a vida mística e começamos com o homem, encaramos todas as coisas como Divinas, porque elas emanam da mesma fonte, e nenhum ser é ímpio, a menos que estejamos numa posição de mostrar que ele dirigiu sua vontade em oposição àquilo que sabe ser melhor e correto.

De acordo com o misticismo islamítico, ou o misticismo dos maometanos — que, coincidentemente, é um sistema de instrução altamente organizado e inspirador — há três estágios de vida mística. Certos aspectos são velados no começo e no meio. No período inicial, as coisas externas, as coisas do mundo e os interesses temporais de tal forma ocupam a consciência, de acordo com o misticismo islâmico, que o sentido interior, ou Deus, é velado à consciência. O homem tem então pouco interesse pelos valores espirituais dos impulsos Divinos. Mais tarde, no período intermediário da existência, ocorre uma transição. O mundo torna-se velado porque o homem tem um despertar repentino. Passa a ter percepção da sua natureza espiritual, e tem tal prazer nisso que adapta todo o seu pensamento e sua vida de acordo com esse sentimento. Ele tende a descuidar-se da vida prática, da realidade do mundo cotidiano e, assim, o véu cai novamente diante de sua consciência. Este período intermediário da vida mística é chamado, pelos místicos islamitas, de período de arrebatamento ou de embriaguez. É um período de êxtases espirituais, de inspiração Divina, quando a consciência ganha asas e transcende todos os interesses mundanos, às vezes em detrimento do seu bem-estar.

Contudo, no estágio final da vida mística, as coisas criadas, as coisas do mundo, não mais ocultam Deus da consciência do místico. Ele está bastante cônscio da natureza de Deus, mas também sua percepção de Deus não mais oculta sua consciência das coisas terrenas. Deus é visto como o criador, e o universo, como coisa criada. Em outras palavras, no estágio final da vida do místico dá-se um equilíbrio e o homem tem igual apreciação da lei e da manifestação da lei. Este estado final da vida mística é adequadamente chamado de sobriedade pelos místicos islâmicos. É a sobriedade da compreensão, a temperança da compreensão. Não é nem a consciência objetiva extrema nem a Consciência Divina extrema.

O misticismo tradicional pode ser reduzido a estes princípios fundamentais: a alma é o eu espiritual do homem; a alma é parte de uma alma universal, uma alma que penetra todo o universo. Essa alma é Deus. O mundo material e o corpo físico são o lado negativo desta alma absoluta e positiva, ou Deus, que permeia o universo — uma espécie de imperfeição, um afastamento da bondade; e quando a alma está contida numa forma física ou corpo, o homem como uma unidade de alma e corpo não é perfeito. O corpo, o material, tem de ser harmonizado com a alma, o imaterial. O homem será confinado num corpo, em várias vidas, enquanto permitir que as tentações, os desejos e apetites dominem sua natureza. Deve, ao contrário, esforçar-se por superá-las, suprimi-las, dar-se inteiramente àqueles impulsos espirituais que existem em sua própria natureza; esses impulsos são os ditames da consciência que encontra sua expressão na conduta ética, moral e religiosa.

O misticismo moderno, que é baseado nestes velhos princípios fundamentais, não declara que o corpo material e o mundo físico e terreno não tenham* base ou existência, que sejam produtos da imaginação, não-seres, ou malignos. Declara, sim, que não são dignos de confiança e que não podemos perceber sua verdadeira natureza. Por mudarem constantemente, assim como os sentidos do homem, amanhã podem não ser como os percebemos hoje. Portanto, não se deve dar crédito às suas manifestações. Entretanto, o misticismo moderno os reconhece como parte do plano universal, mas imperfeitos - isto é, menos amplos em contraste com a mente ou a inteligência de Deus, o Absoluto.

Recomenda-se um estudo e um exame deste mundo material e terreno, de modo que o homem possa tentar, dentro do seu poder limitado, regulá-lo, impedir que ele o controle ou domine. O misticismo recomenda estudo e aprendizado intensivos, de modo que o homem possa conhecer a relação desta fase terrena, material e imperfeita com o absoluto perfeito, ou Deus. Assim, o misticismo moderno declara que, na realidade, existe uma dualidade no universo, mas que, em essência, ele é UM. Todas as coisas são desse UM, embora existam diferentes estágios de perfeição. O mundo material e suas manifestações não são considerados tão perfeitos quanto o mundo espiritual, mas dele fazem parte. A dualidade entra na concepção, declarando, por um lado, que a alma, uma parte do todo absoluto, é boa, e que tudo o mais, em contraste, muito embora dele faça parte, é por graus escalonados, menos perfeito.

Portanto, cabe ao indivíduo, que se declara um estudioso do misticismo moderno e aspirante à vida mística, fazer análise muito meticulosa de termos e assuntos como: o absoluto, o espiritual, o ser, o reino material, o livre arbítrio, e a atitude científica do espírito. Estes fundamentos, e alguns mais como eles, são as pedras fundamentais da sua filosofia se pretender tornar-se filósofo místico. Aquele que tem um conhecimento profundo destes fundamentos não terá dificuldade em, de modo racional, agrupá-los e reagrupá-los num sistema que o ajudará a atingir seu objetivo. Supomos que esse objetivo seja aquela satisfação íntima e harmonização que os verdadeiros místicos declaram constituir "um sentido de Deus".

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