Embora a presença de elementos individuais cristãos no filme seja clara, todo o sistema cristão apresentado no filme não é o tradicional, mas o ortodoxo. Mais ainda, os elementos cristãos do filme fazem maior sentido quando vistos dentro do contexto Gnóstico-CRISTÃO.
O GNOSTICISMO foi um sistema religioso que floresceu por séculos no começo da Era Cristã e em muitas regiões do antigo mundo mediterrâneo, onde competiu fortemente com o cristianismo ortodoxo enquanto, em outras áreas, representava a única interpretação do cristianismo, como é sabido.
Os gnósticos tiveram suas próprias escrituras, acessíveis a nós na forma dos Evangelhos de Nag Hammadi, a partir dos quais se pode ter uma idéia geral das crenças gnósticas.Ainda que o Gnosticismo Cristão compreenda muitas variedades, o Gnosticismo como um todo parece haver abraçado o Mito Cosmogônico Oriental, que explica a natureza verdadeira do universo e do ser humano dentro dele.Uma pequena citação desse Mito esclarece vários aspectos dentro de Matrix.
No Mito Gnóstico, o Deus Supremo é totalmente perfeito, e, por isso, estranho e misterioso, “inefável”, “inalcançável”, “imensurável luz, pura, santa e imaculada” (Apócrifo de João). Mais ainda: Para este Deus existem outros seres menos divinos no Pleroma (similar ao Paraíso, uma divisão desse universo que não é a Terra), que é dotado de um sexo metafórico masculino ou feminino.
Pares desses seres são capazes de produzir descendência, que são, eles mesmos, emanações divinas perfeitas em si mesmas. O problema surge quando um EON ou Ser chamado SOPHIA (Sabedoria em grego), uma mulher, decide “levar adiante sua semelhança sem o consentimento do Espírito” – que gera uma descendência sem sua consorte (Apócrifo de João).
A antiga visão era a de que as mulheres oferecem a matéria na reprodução, e os homens, a forma. Por isso, o ato de Sophia produz uma descendência que é imperfeita ou até mesmo mal formada, e ela a afasta dos outros seres divinos do Pleroma, levando-a para outra região isolada do cosmos. Essas deformadas e ignorantes deidades, as vezes denominadas JALDABAOTH, equivocadamente acreditam ser o único Deus.
Os gnósticos identificam Jaldabaoth como o Deus Creador do Antigo Testamento, o qual decide crear os Arcontes (Anjos), o mundo material (Terra) e os seres humanos. Embora as tradições variem, Jaldabaoth normalmente é enganado dentro do alento divino ou espírito de sua mãe Sophia que antigamente vivia nele, dentro do ser humano (especialmente Apócrifo de João, ecos do Gênese 2-3).
Nas mentiras, o dilema humano. Somos pérolas no lodo, espíritos divinos (bom) aprisionados num corpo material (mau) e num mundo material (mau). O Paraíso é nosso verdadeiro lar, mas estamos exilados do Pleroma.
Felizmente, para o Gnóstico a salvação está disponível na forma de Gnose ou Conhecimento, dado pelo Redentor Gnóstico, que é o Cristo, a figura enviado pelo Altíssimo para libertar a espécie humana de Jaldabaoth.
A Gnose envolve uma compreensão de nossa verdadeira origem e natureza, a metafísica realidade ainda desconhecida para nós, resultando na fuga gnóstica (da morte) da escravizante prisão material do mundo e do corpo para as regiões superiores do espírito. Contudo, para fazer esse ascenso, o Gnóstico precisa passar pelos Arcontes, que são ciumentos de sua luminosidade, espírito ou inteligência e que por isso tratam de dificultar sua jornada ascendente.
Em significativo grau, o mito básico gnóstico compara o enredo de MATRIX, com respeito a ambos, problemas que os humanos enfrentam e sua solução. Como Sophia, nós concebemos uma descendência de nosso próprio orgulho, como explica Morpheus: “No começo do século 21 toda a espécie humana estava unida na celebração. Estávamos maravilhados com nossa própria magnificência tal como geramos a IA (Inteligência Artificial).
Contudo, essa nossa descendência está como Jaldabaoth, mal formada (matéria sem espírito?). Morpheus descreve a IA como “uma singular consciência que desenvolveu uma raça inteira de máquinas”, um exato paralelo entre o Creador Gnóstico dos Arcontes (Anjos) e o mundo material ilusório.
A IA cria Matrix, uma simulação de computador que é a “prisão de nossas mentes”. Por isso, Jaldabaoth / IA aprisiona a espécie humana numa jaula material que não representa a última realidade, como Morpheus explica a Neo: “Enquanto Matrix existir a raça humana nunca será livre”.
O filme também se vale da linguagem metafórica utilizada pelos Gnósticos. Os textos de Nag Hammadi descrevem o problema humano fundamental em metáforas de cegueira, sono, ignorância, sonhos e trevas/noite, enquanto a solução é apresentada com palavras como visão, desperto, conhecimento (gnose), despertar de sonhos e luz/dia.
De forma análoga, no filme, Morpheus, cujo nome foi retirado do Deus grego dos sonhos e do sono, revela a Neo que Matrix é um “mundo de sonhos gerado por computador”.
Quando Neo é desconectado e desperta pela primeira vez em Nebuchadnezzar, em meio a um brilhante espaço branco iluminado (linguagem cinematográfica para indicar o Paraíso), seus olhos ardem, conforme explica Morpheus, porque ele nunca os havia usado antes. Tudo que Neo havia visto até aquele ponto o foi através do olho da mente, como num sonho, criado através de um software de simulação. Tal como um antigo Gnóstico, Morpheus explica que a respiração conduz Neo pelo programa de treinamento de artes marciais e que não há nada a fazer com seu corpo, a velocidade ou sua força, os quais são todos ilusórios. Mais ainda, eles dependem unicamente de sua mente, que é real.
Os paralelos entre Neo e Cristo, mostrado anteriormente, são melhor entendidos no contexto gnóstico a partir do momento que Neo é “salvo” através da gnose ou do conhecimento secreto, que ele passa para outros.
Neo aprende a respeito da verdadeira estrutura da realidade e sobre sua real identidade, a qual permite que ele rompa as leis do mundo material, o qual, agora, é percebido como mera ilusão.
É isso que ele aprende: a mente torna tudo (Matrix ou o mundo material) real, mas ela não é a realidade última. Na cena final do filme, é essa Gnose que Neo passa aos outros com o propósito de liberá-los da prisão de suas mentes: Matrix.
Ele atua como um Redentor Gnóstico, uma figura pertencente a outro reino, que penetra no mundo material com o objetivo de ensinar o conhecimento salvador a respeito da verdadeira identidade da espécie humana e da verdadeira estrutura da realidade, libertando assim todo aquele capaz de entender a mensagem.
De facto, o nome de Neo não é somente Mr. Anderson (o Filho do Homem); é Thomas (Tomé) Anderson, consoante ao mais famoso evangelho gnóstico: O Evangelho de Tomé. Também, antes de ser batizado como Neo (o único a poder iniciar algo Novo desde que seja de facto O Escolhido), ele é Tomé duvidando; não acredita nesse papel de Redentor.
De facto, Tomé quer dizer “Gêmeo”, e na antiga tradição cristã, ele é o irmão gêmeo de Jesus. Em certo sentido, o papel representado por Keanu Reeves é um personagem gêmeo a partir de sua estruturação como o descrente Tomé e a figura do Cristo Gnóstico.
Não somente a forma como Neo passa o conhecimento secreto que salva, em bom estilo gnóstico, mas também, da mesma forma, a forma como ele aprende evoca alguns elementos do Gnosticismo. Imbuído de imagens das tradições do Oriente o programa de treinamento ensina a Neo o conceito de “congelamento”, livrando a mente e superando o medo, cinematograficamente captado pelo efeito “Bullet Time” (montagens digitais de “quadros” congelados / efeito de câmara lenta obtido a partir do uso simultâneo de muitas câmaras).
Bastante interessante é este conceito de “congelamento” porque também está presente no Gnosticismo, no qual, nos Eons Elevados, são comparados com “atividade” e “repouso”, e somente pode ser compreendido em tal meditativa e centrada maneira, como está claro nessas instruções dadas a um certo Allogenes. “Embora seja impossível para você permanecer, nada tema; mas se v. deseja permanecer retira-te à Existência e v. a encontrará estando em repouso após à semelhança do Escolhido que está verdadeiramente em repouso… E quando v. se tornar perfeito nesse lugar, ainda será v. mesmo”… (Allogenes). O Gnóstico então revela: “Existia comigo a quietude do silêncio e eu ouvi a bem-aventurança pela qual eu conheci meu próprio Ser”(Allogenes). Então Neo capta a completa extensão de sua “gnose salvadora”: Matrix é somente um mundo ilusório. E um reflexivo Keanu Reeves, silenciosa e calmamente, contempla as balas que ele fez parar no ar, filmado em “bullet time”.
Ainda outro paralelo com o Gnosticismo, ocorre no figurino dos Agentes, como o Agente Smith e seu opositor, o equivalente gnóstico de Neo e todos os demais que tentam sair de Matrix. A IA criou esses programas artificiais para funcionarem como “porteiros” – os Guardas das portas – que possuem todas as chaves. “Esses Agentes são parentes dos ciumentos Arcontes criados por Jaldabaoth para bloquearem a ascensão do Gnóstico quando tentam deixar o mundo material. Eles defendem as portas em sucessivos níveis ao paraíso (exº. Apocalipse de Paulo).
Contudo, como prediz Morpheus, Neo eventualmente é capaz de derrotar os Agentes, porque, enquanto eles precisam seguir as regras de Matrix, sua mente humana permite a ele (Neo) dobrar ou quebrar as regras.
Entretanto, a mente não se compara, no filme, somente à inteligência racional. Caso contrário, a IA sempre poderia vencer. Mais ainda, o conceito de “mente” aparece no filme unicamente para indicar a capacidade humana de imaginar, por intuição ou, por assim dizer, para “pensar fora da caixa”.
Ambos, o filme e os gnósticos, afirmam que a chispa divina dentro do homem permite a percepção da gnose como algo maior que aquilo alcançável, mesmo pelo Arconte-Chefe ou Agente de Jaldabaoth.
O poder da mãe (Sophia, em nossa analogia, a espécie humana) saído de Jaldabaoth [IA] para dentro dos corpos formados pela natureza [os humanos crescem nas fazendas da IA]… Em certo momento o restante dos poderes (os Arcontes ou Agentes) se tornam ciumentos porque ele (Neo) se tornou um Ser por intermédio de todos eles, e foram eles que deram seu poder ao homem, e sua inteligência (mente) ficou maior que a daqueles todos que o fizeram e maior que aquele do chefe dos arcontes (Agente Smith?). E quando eles percebem que se tornou um iluminado e que pode pensar melhor que eles, levam-no lançando-o à mais baixa de toda a matéria [simulada por Matrix] (Apócrifo de João 19-20).
É notável como Neo supera o Agente Smith na cena final do filme precisamente pela total compreensão da ilusão de Matrix, algo que, aparentemente, o Agente Smith não consegue fazer. Portanto, subseqüentemente Neo se torna capaz de romper barreiras que o Agente não consegue. Sua derrota final vincula a entrada (de Neo) no corpo de Smith, despedaçando-o pela força da pura luminosidade, retratada pelos efeitos especiais de luz rebentando Smith de dentro para fora.
Acima de tudo, então, o sistema retratado em Matrix compara o cristianismo gnóstico em numerosos aspectos, especialmente o delineamento do problema fundamental da humanidade vivendo num mundo de ilusões que simula uma realidade e a solução do acordar do sonho. A figura central do Mito de Sophia, Jaldabaoth, os Arcontes e o Redentor Gnóstico igualmente encontram paralelo com as figuras-chave do filme, atuando de forma semelhante. A linguagem do gnosticismo e do filme também são parecidas: sonho x despertar; cegueira x visão; luz x trevas.
Contudo, dado que o gnosticismo presume um mundo desconhecido de seres divinos, onde está Deus no filme? Em outras palavras, quando Neo se transforma em pura luz, isso é o símbolo da divindade ou do potencial humano?
A questão se torna ainda mais pertinente com a identificação da espécie humana com Sophia – um Ser Divino no gnosticismo. Em certo nível parece não haver Deus no filme. Embora existam motivos apocalípticos, Conrad Ostwalt corretamente argumenta que diferente do Apocalipse cristão convencional, em Matrix, ambos, a Catástrofe e sua solução, estão na atividade humana, isto é, o divino não está aparente. Mas, em outro nível, o filme abre a possibilidade de Deus através da figura do Oráculo, que vive dentro de Matrix e ainda tem acesso para conhecer o futuro, que mesmo aqueles liberados de Matrix ainda não possuem. Essa sugestão é ainda mais forte no roteiro original, no qual o apartamento do Oráculo é o Santo dos Santos aninhado dentro do Templo de Zion (Sião).
A divindade também pode jogar um papel na passada encarnação de Neo e sua nova vinda como O Escolhido; se, porém, houver alguma divindade implícita no filme, isso é transcendente, como a divindade do Inefável, o Supremo Deus Invisível do Gnosticismo, exceto onde isso está imanente na forma de Chispa Divina ativa nos humanos.
Vale lembrar que uma personagem muito influente e decisiva na história é a Trinity (Trindade). Logo no início do filme, Neo é recomendado a seguir o coelho branco para encontrar a Trindade. O coelho representa fertilidade e libertação; tal como coelho que sai da toca.
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