Krak dos Cavaleiros

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

AMOR E DESEJO




Para a Humanidade, o amor talvez seja a mais desconcertante de todas as experiências interiores, mas, paradoxalmente, todo indivíduo a tem até certo ponto. O amor não é um produto da mente. Não é uma intelectualização, mas sim manifestação psíquica e emocional vivida pelo eu. Em assim sendo, o amor foi idealizado por poetas e bardos e a tal ponto, que a maioria das pessoas acredita tratar-se de algo a ser deixado a cargo da sorte, ou a ser misteriosamente alcançado sem fórmula ou método.


Os amores são de vários tipos. No sufismo, o misticismo maometano, diz-se que o amor de Deus é expressado no amor do homem pelo Divino. Foi Deus, de acordo com o sufismo, que tornou possível ao homem amar o Divino; e assim, quando o homem expressa amor Divino, um amor de Deus, Deus está realmente amando a Si mesmo. Portanto, quando o homem se nega amor Divino, ele está restringindo a natureza de Deus, e o sufismo, portanto, afirma que o amor Divino é o mais exaltado.


Dhu Dum, místico muçulmano, perguntou o que é o amor puro, o amor que não se esgota, e respondeu à sua própria pergunta, para esclarecimento de seus discípulos. Sentenciou que é o amor de Deus, porque o amor de Deus é tão absorvente que nenhum outro amor pode competir com ele ou diminuí-lo. Acrescentou, ainda, que esse amor de Deus, amor puro, é desinteressado. Com isto, queria dizer que não é afetado por benefícios que dele possam advir. Em outras palavras, aquele que tem esse amor puro não amará mais a Deus pelas vantagens que esse amor lhe possa trazer, nem amará menos a Deus pelos sacrifícios que esse amor possa exigir.


Al-Ghazali, filósofo e místico muçulmano do século X, ensinava as doutrinas místicas islâmicas em Bagdá. Distinguia admiravelmente entre três tipos de amor. O primeiro é o amor a si mesmo, engendrado pelo instinto de autoconservação. Embora muitos místicos e filósofos tenham execrado este amor a si mesmo, ele afirmava que esse amor a si mesmo é muito essencial porque temos de amar nossa existência o suficiente para que nos afirmemos como ser, e, se assim não o fizermos, não poderemos viver nenhum dos outros amores.


O segundo é o amor ao próximo, pelos benefícios que ele nos concede. É um amor natural e, num sentido, é um tanto parecido com o primeiro, o amor a si mesmo, como pode ser nosso amor ao médico, por exemplo, devido à sua arte de curar, ou nosso amor ao mestre, devido à instrução que ele nos proporciona.


O terceiro amor, o amor mais elevado, segundo Al-Ghazali, é o amor por uma coisa por si mesmo, e não por quaisquer benefícios que dela possam ser obtidos. A coisa em si é a essência desse prazer. Ela é apreciada pela sua própria natureza, tal como a essência da beleza é o deleite que dela tiramos. Ele usa, como analogia, o amor pelas coisas verdes, o amor pela água corrente. Nem sempre amamos essas coisas pela razão de que coisas verdes possam ser comidas ou que a água corrente possa ser bebida; elas são amadas também pela simples percepção, pelo que são, pela beleza que dentro delas existe.


Al-Ghazali conclui: "Onde existe beleza, é natural amar". Se Deus é belo, certamente Ele será amado por todos aqueles a quem Ele se revela; e quanto mais bela uma coisa, mais ela é amada.


Plotino, o pai do neoplatonismo, que muito contribuiu para as doutrinas místicas do mundo, também declarou que existem diferentes amores; por exemplo, o amor pela criação, como o amor de um artesão pela sua obra; o amor de um marceneiro pelo seu trabalho, ou o de um ourives pelos frutos da sua arte, ou o de um estudante pelos seus estudos. O amor mais alto, diz Plotino, é o amor Hierárquico. É o amor da Alma Universal em nós pelo Absoluto, pela unidade da qual ela é sempre parte.


Aceitemos, por enquanto, o ponto de vista místico, estético e oriental do amor, dado acima, isto é, que ele é uma força impulsionadora da natureza espiritual do homem para satisfazer os propósitos da alma. Encontramos na natureza complexa do homem outros paralelos ao amor? Em outras palavras, encontramos quaisquer outros impulsos para deleitar a natureza do homem? A natureza física do homem é um aspecto do seu ser trino, conceito geralmente aceito. Existem fatores que lhe são essenciais, tais como alimento, bebida, abrigo e sono. Para que a natureza física do homem perpetue sua espécie, existe também o fator da procriação. Portanto, estas coisas são finalidades, digamos, que o ser físico tem de alcançar para continuar sendo o que é. Quando elas são possuídas, goza-se, temporariamente, de uma harmonia ou estado de equilíbrio. Quando, entretanto, há uma deficiência delas, surge o desequilíbrio. A plenitude ou perfeição da natureza física do homem é seu estado normal. Essa normalidade é acompanhada pela sensação de satisfação, espécie de prazer que conhecemos como felicidade. Quando há uma deficiência, falta daquilo do que o ser físico do homem depende, tornamo-nos cônscios de uma irritabilidade ou de uma desarmonia. Essa desarmonia é que causa o desejo.


Felizmente, acompanhando esses desejos físicos, existem ideais, a percepção do que é necessário para satisfazê-los. Um animal percebe isso por meio de suas experiências — ou seja, pelo que ele vê e ouve, e sabe o que satisfará sua fome, sua sede ou suas paixões. Entre os animais inferiores, essa percepção parece ser uma resposta inconsciente. O cheiro do alimento é subjetivamente associado ao desejo pelo alimento, e o animal pega sua presa. No homem, aquilo que satisfará o desejo físico é percebido conscientemente. Em outras palavras, sabemos o que queremos bem como que o queremos. Nossos desejos, portanto, não são tão gerais quanto os dos animais. Eles são mais específicos. Sabemos das coisas ou condições que temos certeza que removerão ou satisfarão nossos desejos. Aquilo que concebemos como benéfico para nossas necessidades é o bem. Ademais, buscamos aquelas coisas capazes de nos produzir sensações agradáveis, que se harmonizam com a natureza do nosso ser físico. Tais coisas ou experiências tornam-se nossos ideais.


Assim, cada um dos nossos sentidos objetivos ou receptores busca um ideal ou uma qualidade. Desejamos fragrância para o olfato, porque nos é agradável. Queremos doçura para o paladar, igualmente porque é agradável. Desejamos certa harmonia de sons, porque é agradável ao ouvido e ao sistema nervoso. As coisas que representam essas qualidades desejadas nos são atraentes. Dizemos que aquilo que é simétrico na forma, ou cujas cores são atraentes para nossa vista, é belo. Por belo referimo-nos às coisas de uma experiência visual que são agradáveis ao nosso sentido da visão. Fragrância para o sentido do olfato é, assim, uma espécie de beleza, pois representa o ideal de harmonia para aquele sentido. Da mesma forma, a doçura é uma espécie de beleza para o sentido do paladar. Beleza é, apenas, um nome para o que é agradável ao sentido da visão. Cada sentido tem sua correspondente qualidade ou beleza. Qualquer coisa que traz prazer ou satisfação a um sentido é, em outras palavras, bela para ele.


Portanto, o desejo é o impulso para encontrar o belo ou seu equivalente. É a busca da coisa ou condição que satisfará aquela natureza a que o desejo serve. Ninguém jamais teve um desejo por aquilo que não é belo, isto é, por aquilo que não representa uma experiência agradável para a pessoa, de uma ou outra forma. Se um desejo não representasse aquilo que satisfaria o homem, este permaneceria insatisfeito e, fisicamente, se tornaria anormal e, por conseguinte, sofreria.


Desde que o homem começou a especular sobre seu próprio complexo ser, freqüentemente se tem considerado de três naturezas: física, intelectual ou mental e espiritual. Contudo, muitas vezes reuniu as duas primeiras em uma só. As três naturezas, portanto, constituem a hierarquia do ser humano. Todas as três se fundem umas nas outras mas, ainda assim, têm características distintas. Afinal de contas, se estas três naturezas estão de qualquer modo relacionadas, cada uma por sua vez, a partir da mais alta, tem necessidade de exercer alguma influência sobre a outra. Elas não poderiam ser absolutamente separadas. Logo, a mais inferior, ou física, tem seus ideais, assim como qualquer uma das outras. Os ideais do físico são aqueles que, como dissemos, os sentidos percebem como agradáveis e satisfazem os desejos do corpo. O corpo tem de unir-se aos seus ideais. Em outras palavras, o corpo tem de vincular-se àquilo que é belo, no sentido em que usamos a palavra beleza, para satisfazer os apetites e as paixões. Se não faz isto, o corpo torna-se deformado e imperfeito.


Os desejos do corpo são, assim, os amores do corpo. Praticar o auto-sacrifício, suprimir os amores do corpo, é corromper uma das naturezas do ser trino do homem. Esses amores são essenciais para o físico. Eles o ajudam a desposar o ideal que manterá a harmonia da sua essência.


Entretanto, o homem tem de compreender que a finalidade da vida não é simplesmente a satisfação dos desejos físicos. A busca desses amores físicos deixa insatisfeitos os desejos das outras naturezas. Ela mantém o homem continuamente em aflição. Como disse Espinosa: ''As tristezas e os infortúnios têm sua fonte principal num amor excessivo por aquilo que é sujeito a muitas variações, e sobre o qual nunca podemos ter controle... tampouco a injustiça, infortúnio, inimizade etc., surgem fora do amor por coisas que ninguém pode realmente controlar". Na realidade, isto quer dizer que deveríamos conhecer os limites dos ideais do físico. Amá-los somente pelo que podem proporcionar e na medida em que servem o corpo e não buscá-los continuamente por si mesmos, pois eles não podem satisfazer toda a natureza do homem.


Existem, também, os amores intelectuais, os desejos da mente. A mente, a inteligência ativa, como sabemos, pode estabelecer finalidades, pode aspirar a propósitos. Estas aspirações são ideais mentais. A mente procura trazê-los à realidade, concretizá-los e realizá-los, tal como o escultor cria uma estátua para que possa viver objetivamente a idéia que tem em mente. O amor intelectual é muito maior que o corporal. Seus ideais são muito mais numerosos. Cada um desses ideais intelectuais, embora satisfaça em parte o amor intelectual, impele o amor a criar outros ainda maiores que dão satisfação intelectual crescente. Enquanto o amor físico, se favorecido com demasiada freqüência, pode ficar saciado, os amores intelectuais sempre aumentam o prazer que proporcionam à mente do homem. Os ideais da natureza intelectual do homem são o conhecimento e a realização. O intelecto deve unir-se a esses ideais se quiser alcançar sua normalidade, independente dos amores e satisfações que o homem possa ter fisicamente.


A seguir, examinemos a mais elevada natureza do homem — a espiritual — interpretando o conceito dessa natureza como desejarmos. Devemos imaginar o amor espiritual como se fosse, em essência, extremamente diferente dos outros amores, só porque parece mais impessoal, isto é, porque serve a um eu maior? Não é o amor do homem por Deus, pelo Divino, igualmente um desejo — um desejo tendo uma finalidade mais elevada ou mais exaltada? É um desejo destinado a manter a natureza espiritual do homem satisfeita. Plotino, o grande filósofo neoplatônico e intérprete do misticismo, disse: "O amor conduz todas as coisas à natureza do belo".


Diferentes amores pertencem a diferentes graus na hierarquia da existência humana. O amor espiritual é a atividade da alma desejando o bem, disse um místico, ou seja, o amor espiritual é o desejo da alma pelo que é agradável ao seu exaltado sentido. "O amor Divino contempla a beleza Divina", é o adágio de um místico sufi. Pode-se interpretar esta asserção como tradução de que o mais alto desejo do homem, ou amor espiritual, é a necessidade íntima de experimentar a harmonia Cósmica, ou a beleza Divina da Natureza. Esse êxtase satisfaz a alma, assim como os amores somáticos trazem prazer ao corpo.


Portanto, nenhum amor de que o homem é capaz é indigno, ou deve ser suprimido. Cada amor — os do corpo, da mente e da alma — tem de ser unido à sua respectiva natureza. Tal é, misticamente, o casamento da trindade ou os casamentos da natureza trina do homem. Cada casamento ocorre dentro da sua própria casta ou classe. Só se experimenta dificuldade quando uma natureza ama o ideal de outra. Quando um homem dissipa seus amores espirituais ou intelectuais, despreza-os em troca dos do corpo, o resultado é degenerescência e infelicidade. Espinosa disse: "O amor de Deus deveria ser um amor do imutável e do eterno... não maculado por qualquer defeito inerente ao amor comum... este amor de Deus pelo inalterável e eterno toma posse da nossa mente sem despertar emoções de medo, ansiedade, ódio etc.". Em outras palavras, o amor de Deus é um amor do que jamais termina, que não tem natureza decrescente. É o amor de algo que não pode ser roubado, de que ninguém pode ter inveja, de modo que é um amor livre das emoções que acompanham os amores do corpo. "Este amor intelectual da mente por Deus é o próprio amor de Deus com o qual Deus ama a si mesmo... Esse amor intelectual da mente por Deus é uma parte do amor infinito com o qual Deus ama a si mesmo". Nisto, vemos que o amor de Deus é manifestado na alma do homem, como o desejo do homem de amar a Deus, de compreendê-Lo e de ser absorvido na Sua natureza. É como uma tira de borracha esticada entre dois pontos. Quanto mais se estica uma ponta, mais a outra procura retornar ao centro.


Um místico sufi, Hallaj, disse: "Antes da criação, Deus se amava em absoluta unidade. Pelo amor, revelou-Se a Si sozinho. Então, desejando contemplar o amor — em unicidade — o amor sem dualidade e como um objeto externo, Deus criou da inexistência uma imagem de Si mesmo e dotou-a de todos os Seus atributos. Esta imagem é o homem".


Em poucas palavras, isto quer dizer que o amor do homem por Deus é o amor de Deus objetivamente reduzido a um estado menor — como um reflexo num espelho é menos real do que é refletido.


O amor pela beleza física, dizem-nos Plotino e Platão, é o primeiro estágio legítimo na ascensão para o amor pelas idéias Divinas. O corpo tem de amar o que ele concebe como belo, seus ideais, de modo que sua natureza possa ser venturosamente unida e tornar-se saudável e normal. Quando isto é realizado, o amor pela beleza intelectual, ou conhecimento, é a etapa seguinte na ascensão. Quando se tem satisfação mental ou intelectual, então o homem está preparado para o amor maior, o amor pela beleza Divina, pelas coisas espirituais do mundo. Portanto, não existem amores isolados, e sim uma escala gradual de amores. O verdadeiro valor de cada um é determinado pelo seu ideal. Quanto mais limitado o ideal — a coisa concebida como o belo —, menor o amor.


 Naturalmente, eles percebem que o amor não é meramente uma experiência intelectual; mas, por outro lado, também percebem que é essencial compreender as causas do amor, de modo a serem capazes de produzir o efeito mais duradouro. Primeiro, dizem que, basicamente, todo amor é desejo. É um anelo ou um apetite, se quiserem, por aquilo que nos traz prazer. Ninguém, jamais, amou aquilo que traz dor, sofrimento, infortúnio, ou tormento. Por conseguinte, os rosacruzes afirmam que o amor é o desejo de harmonia. Contudo, o amor por aquilo que seria harmonioso apenas para os sentidos físicos deixaria outros amores certos sem recompensa. O amor do intelecto pela realização dos seus ideais seria desprezado. O amor do eu emocional seria esquecido, deixando-o, talvez, torturado por temores. O amor do eu espiritual para expressar seus sentimentos psiquicamente também seria engolfado, se nos concentrássemos num amor que traz harmonia apenas aos sentidos físicos. Somente quando sentimos a harmonia de todo o nosso ser, todos os aspectos de nós mesmos, é que experimentamos o amor absoluto, a satisfação completa. Este amor absoluto é encontrado na saúde do corpo e no seu desejo de manter-se. Ele consiste, também, do amor por exercitar os poderes criativos da mente e o amor por expressar os valores espirituais, tais como compaixão e abnegação.

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