Krak dos Cavaleiros

domingo, 5 de setembro de 2010

O ódio de Filipe, o Belo, pela Ordem do Templo



O rei de ferro tinha a jogada ganha. Não seria Clemente V quem o
impediria de pôr em execução os seus desígnios. Mas por que razão
tinha um tal ódio à Ordem do Templo? As razões eram, sem dúvida,
múltiplas. Em primeiro lugar, a Ordem apenas reconhecia Deus como senhor e só o papa tinha um poder - limitado - sobre ela. A sua organização interna era a de uma república aristocrática, exemplo incómodo para a realeza hereditária. Não pedira o rei que a Ordem fosse reformada e que o cargo de Grão-Mestre se convertesse em apanágio hereditário da sua linhagem? Do seu palácio, podia ver a Torre do Templo que o afrontava, cidade dentro da cidade, e que não tinha contas a prestar-lhe. O Templo tinha as suas liberalidades, os seus privilégios, o seu direito de asilo, a sua alta, média e baixa justiça. Daí a prontidão com que o rei tomou posse da Torre do Templo na própria manhã em que os monges-soldados foram detidos.Depois do concilio de Sens, em 1310, Filipe, o Belo, mandou desenterrar e queimar as ossadas do tesoureiro que mandara construir essa Torre do Templo, um século antes. Que ódio acumulado deveria ter o rei para chegar a esse ponto? E talvez, também, que decepção por não ter encontrado lá o que procurava: um tesouro importante. Como poderia não lhes ter ódio, ele que conhecera a humilhação de ter de pedir, várias vezes, a ajuda financeira dos Templários?Ademais, o rei fazia sem dúvida um cálculo político. Qual seria o poder dos reis que quisessem opor-se ao Templo? Não iriam os Templários construir um império na Europa e, sobretudo, em França,onde estavam melhor implantados? Filipe, o Belo, decidira resolver essa questão à sua maneira.
O rei de França, orgulhoso, tinha outras razões para se sentir
humilhado pela Ordem. Houvera aquela recusa de lhe concederem o título de membro honorário. Tinham-se recusado a acolher o seu filho. Ainda por cima, na sequência de malversações monetárias de Filipe, o Belo,em Dezembro de 1306, houvera tumultos em Paris. O rei encontrara-se em perigo: tivera de pedir asilo ao Templo que o acolhera na sua Torre de Paris. Teve de lá ficar durante vários dias, à espera de que a revolta fosse sufocada. Como deve ter odiado os seus salvadores! Essa humilhação lembrou-lhe, sem dúvida, a que sofrera na infância e que o marcara. Acompanhara então o seu pai, Filipe, o Ousado, numa viagem ao Languedoque. Nessa altura, haviam visitado os Voisins,senhores de Rennes-de-Château, e, sobretudo, os Aniort. Raymond d'Aniort, o chefe de familia, senhor no Razès, a sul de Carcassonne,era parente do rei. O seu jovem irmão, Udaut, simpatizou com o futuro Filipe, o Belo.Os dois primos, em alguns dias passados juntos, descobriram gostos
comuns.Divertiram-se, caçaram com o falcão... E, depois, havia lá uma prima de Udaut, Aélis, que agradava muito ao jovem delfim. Tudo isso transformava a sua estada num momento muito agradável. O futuro rei teria desejado que Udaut se tornasse seu companheiro de armas, mas este recusou: decidira entrar para a Ordem do Templo. Assim, desde a sua juventude,Filipe vira-se rejeitado em proveito da Ordem e, quando deixou a região, o azedume acompanhara-o.Tudo isso não era de molde a predispor Filipe, o Belo, em favor doTemplo. No entanto, o verdadeiro motivo que decidiu o rei a abater a Ordem era, sem dúvida, mais sórdido. Tratava-se de rapinar os seus haveres, de encher as «arcas» do fisco, de submeter bens ao imposto e,sobretudo, de se livrar de duas dívidas notórias. Filipe, o Belo,devia à Ordem quinhentas mil libras e duzentos mil florins, sem falar de todas as dívidas da sua familia.O rei manifestou o seu despeito por não ter descoberto «o» tesouro do Templo, mas queimou todos os cartuchos, mandando vender todos os objetos encontrados nas comendas templárias, incluindo os de culto.Não podia esperar. Passara o tempo a contar os tostões.Claro que era preciso que a Ordem não saísse limpa da armadilha que lhe fora preparada, ou teria de ser reembolsada do que lhe fora pilhado. Nesse campo, o déspota desconfiava do papa. A vontade de destruir era conhecida de Clemente V, mas a operação de comando sem dúvida que o apanhou desprevenido. Pareceu furioso por ter sido posto assim perante o facto consumado com a cumplicidade de uma parte do seu clero e, em especial, dos dominicanos. Reagiu escrevendo ao rei:Enquanto estávamos longe de vós, estendestes a vossa mão sobre as suas pessoas e os seus bens: fostes ao ponto de os lançar na prisão e - o que leva ao cúmulo a nossa dor - não os haveis libertado. E até, indo mais longe, haveis acrescentado à aflição do cativeiro uma outra
aflição, que por pudor para com a Igreja e para com nós todos, achamos próprio deixar passar actualmente em silêncio.Sem dúvida que Clemente V hesitava referir a tortura por que era praticada com a cumplicidade dos inquisidores. Na sua carta lembrava,por outro lado, que o rei não tinha poder para julgar os eclesiásticos e que só ele era competente na matéria.Filipe, o Belo, fez-lhe saber de imediato que Deus detestava os tíbios e que qualquer demora na repressão dos crimes pode ser considerada uma forma de cumplicidade com os criniinosos. Eis algo que estava cheio de ameaças, tanto mais que o rei lembrava discretamente ao papa que não teria o apoio de toda a Igreja. Os interrogatórios e a tortura
continuaram de vento em popa. Clemente V, provisoriamente, achou mais prudente para a sua própria segurança não insistir. A 27 de Novembro,pela bula Pastoralis praeminentiae, pediu a todos os soberanos que procedessem à detenção dos Templários. Mesmo assim, conseguira que os principais dignitários da Ordem lhe fossem entregues para serem interrogados mas, na verdade, já abdicara de todo o poder.Manifestamente, Clemente V não acreditava na culpabilidade dos Templários, mas apenas se mostrava capaz de ganhar tempo. As confissões feitas, sob tortura, por setenta irmãos não o tinham convencido e pedira aos cardeais Étienne de Guisy e Bérenger Frédol que levassem a cabo uma contra-investigação. Esta mostrara que inúmeros Templários já tinham falecido. Então, Clemente V retirou todos os poderes à Inquisição, o que implicava a anulação de todo o processo.Durante esse tempo, o rei e Nogaret procuravam pôr a opinião pública do seu lado e, em 25 de Março de 1308, Filipe, o Belo, reuniu os Estados Gerais, em Tours. O texto da carta convocatória era de uma duplicidade familiar ao rei de ferro. Uma vez mais, escolhera o estilo lírico, com passagens como:O Céu e a Terra revolvem-se com tantos crimes: os elementos perturbaram-se. [... ] Contra uma peste tão celerada, as leis e as
armas levantar-se-ão, e os próprios animais irracionais e os quatro
elementos com eles!As acusações feitas eram descritas como factos «provados». Tudo fora feito para provocar horror e indignação e para fazer passar o rei pelo defensor mais zeloso da fé cristã. É claro que os Estado Gerais caíram na esparrela. Astuciosamente, o rei mandou inclusive redigir, aos Estados Gerais, uma súplica que o livrava da iniciativa contra o Templo:O povo do reino de França suplica instantemente e com devoção a Sua Majestade real que considere qualquer das seitas e heresias, em relação às quais são alegados direitos para o senhor papa relativamente ao diferendo que se levantou entre vós e ele,relativamente à punição dos Templários, fazia profissão de conservar a fé católica e a conservava, excepto que, num ponto ou em vários, diferia e separava-se da observância completa da Igreja romana... Que ele se lembre de que o chefe dos filhos de Israel, Moisés, ele, amigo de Deus, que lhe falava cara a cara, gritou, numa circunstância semelhante, contra os apóstatas que haviam adorado o bezerro de ouro:«Que cada um se arme com o gládio e atinja o seu parente mais próximo... » Por que razão o rei muito cristão não procederia do mesmo modo,mesmo contra todo o clero se, Deus o não permita, o clero caísse em  erro ou apoiasse e favorecesse os que nele caíram? O papa estava prevenido: Filipe IV iria até ao fim. Seria o braço secular de Deus, pelo menos aos olhos do povo, e não restava mais nada a um papa prestes a ser eliminado. Clemente cedeu uma vez mais e restabeleceu os tribunais eclesiásticos. Procurou apenas inflectirlhes o rumo juntando franciscanos aos dominicanos, constituindo comissões de inquérito nacionais e reservando para si o julgamento dos dignitários.
Clemente V estava cada vez mais inquieto, tanto mais que Nogaret fazia circular libelos difamatórios a seu respeito e perguntava-se o que ele andaria a preparar. Bloqueado em Poitiers, não estava em segurança. Em Março de 1309, conseguiu fugir dos agentes reais e chegar a Avinhão.Quando de uma primeira tentativa, fora apanhado e trazido de volta sob escolta, como um prisioneiro, para Poitiers. Desta vez, julgou-se livre mas o rei enviou para junto dele, em Avinhão, o capitão Raynaldo de Supino, que fora lugar-tenente de Nogaret quando do atentado de Anagni. Clemente já não estava mais seguro em sua casa do que no reino de França.
Entre os mistérios ligados à prisão, há um particularmente irritante:
como é que os Templários foram capturados tão facilmente? E sobretudo,houve muitos que conseguiram escapar?Primeiro ponto que levanta problemas, não se apanhou praticamente nada
com interesse nas comendas templárias, no momento da detenção. Isso pode significar que os Templários não possuíam praticamente nada, para além dos instrumentos necessários à cultura, e das suas armas. Mas isso não poderia ser válido para todas as comendas. Também pode querer dizer que, nas casas do Templo, existiam esconderijos que os homens do rei não descobriram. Mas então, como é que os irmãos não falaram neles, sob tortura? Podemos, por fim, imaginar que alguns responsáveis da Ordem estavam ao corrente da próxima detenção, que mandaram evacuar o que devia sê-lo e que, sem dúvida, se puseram a si próprios a salvo.De qualquer modo, seria muito de espantar que nenhum dos funcionários reais tivesse aberto as instruções antes da data. Sabemos que alguns,amigos do Templo, ou que tinham membros da sua familia na Ordem,preveniram discretamente os irmãos. Foi, o caso, nomeadamente, no Razès.Lembremo-nos também de que Jacques de Molay fora convocado pelo papa e que, nessa altura, ele próprio pedira uma investigação. Não há dúvidas de que, neste contexto, tudo o que pudesse levantar qualquer problema,tudo o que era especialmente precioso por üma razão ou por outra, fora
necessariamente evacuado.Quanto aos homens, parecem ter sido realmente apanhados de surpresa. Alguns foram até massacrados no local, sem terem tempo de se defender,como em Carentoir ou perto de Gavarnie. Mas não foi o que aconteceu em todo o lado. Inúmeros cavaleiros conseguiram fugir. Na Flandres, a maior parte deles desapareceu na natureza e depois, quando as coisas se acalmaram, abrigaram-se discretamente noutras ordens religiosas.
Plaisians, homem de Filipe, o Belo, reconheceu, aliás: Porque uns, presos como suspeitos de heresia e sujeitos a acusação, fugiram da prisão; porque outros, embora citados, não compareceram;porque outros ainda, que o próprio soberano pontífice mandara capturar, fugiram; que alguns deles são salteadores nas florestas, outros ladrões de estrada, outros assassinos, outros ainda ameaçam com
a morte, pela espada ou pelo veneno, os juízes e os ministros
empenhados neste caso... e que... muitos deles que habitavam nos
reinos de Espanha passaram inteiramente para os Sarracenos.
Embora possamos ter algum cepticismo quanto àquilo em que se
transformaram determinados Templários, mesmo assim não deixa de ser uma confissão de que o lançar de rede fora muito incompleto. Alguns Templários parecem pura e simplesmente ter criado um movimento de resistência. Foi o que aconteceu no Puy-de-Dôme. A dez quilómetros para nordeste de Besse, à saída de Cheix, encontram-se as grutas de Jonas. Ligam-se em sete andares numa parede rochosa, a trinta ou quarenta metros do solo. Foram escavadas pelo homem, num período indeterminado. Contam-se sessenta e uma e o conjunto é muito impressionante com os seus caminhos talhados na pedra e providos de parapeitos, as suas escadas em caracol esculpidas na rocha, os seus corredores de ligação, o seu refeitório, a sua «sala dos cavaleiros», a sua cozinha com pia de despejos, as suas cavalariças, etc. Os Templários da região refugiaram-se nelas. Organizaram até uma capela que decoraram com frescos, representando, entre outras coisas... a
negação de São Pedro. Pode ver-se também uma descida da cruz. Jesus a falar com a mãe, ou perante Pilatos, a visita das santas mulheres ao sepulcro e a aparição de Cristo a Maria Madalena. A capela era dedicada a São Lourenço. Estava provida de colunas e de capitéis. Uma sala por cima dela estava talhada de modo a fazer entrar o sol e orientar a luz no santuário. A organização destas grutas e a vida de um grupo de Templários naquele lugar só poderia ter acontecido com a cumplicidade activa da população local.
Não se trata de um caso isolado. Não muito longe de Coubon e do Puy,ficava a casa de La Roche-Dumas. Estava colocada sobre uma rede de grutas e de subterrâneos e serviu também de refúgio a Templários. No Cantal, inúmeros cavaleiros refugiaram-se no castelo de Toursac, onde foram abastecidos pelos camponeses. Ficaram lá durante muitos anos. Na Picardia, os Templários da comenda de Doulens fugiram e refugiaram-se num bosque perto de Longuevilette. Perto de Saint-Flour, um mongesoldado refugiou-se na gruta chamada «do cavaleiro». Quando do concilio de Vienne, nove cavaleiros apresentaram-se espontaneamente para defender a Ordem. Donde vinham? De qualquer modo, comunicaram a todos que quinze centenas de Templários em armas ocupavam as alturas
que dominavam o Ródano, entre Vienne e Lyon. O número era, sem dúvida,exagerado.Em Paris, na véspera de serem detidos, os cavaleiros teriam ido refugiar-se nas pedreiras de Montmartre, o que deixaria supor que estavam prevenidos da prisão iminente. Em Provins, um determinado número de Templários deixou a Ordem alguns dias antes de 13 de Outubro. Sabiam o que ia passar-se?
Por outro lado, no estrangeiro, os Templários nem sempre foram
inquietados. Quase com a única excepção do príncipe de Magdeburgo, os alemães mostraram-se favoráveis à Ordem e não prenderam os seus membros. Mesmo assim, o arcebispo de Mainz reuniu um concilio para julgar os Templários. Estes últimos compareceram a cavalo e armados, conduzidos pelo comendador da Renânia, Hugo de Salm. Protestaram a sua inocencia. O arcebispo tomou nota do fato e não insistiu. Depois, convocou um novo concilio para livrar a Ordem de todas as suspeitas.Na Provença, Carlos II esperou pelo dia 24 de Junho de 1308 para mandar prender os Templários. Mandou-os torturar e matar mas, antes
desse dia, inúmeros irmãos tinham tomado as suas precauções e passado à clandestinidade. Aliás, quando os archeiros vieram à comenda de Montfort-sur-Argens para proceder à detenção, só lá encontraram um velhote. Em Toulon, prevenidos pelo bispo, sete Templários tinham-se sumido na natureza e o ninho estava vazio, quando da chegada dos archeiros. Em Inglaterra, a prisão realizou-se em Dezembro de 1307, mas a maior parte dos irmãos não foi encarcerada, apenas ficaram sujeitos a prisão sob palavra, e, de um modo geral, os inquisidores recusaram a utilização da tortura. Aliás, o rei Eduardo II tivera o cuidado de escrever aos reis de Portugal, de Castela, de Aragão e de Nápoles para dizer que as acusações contra a Ordem do Templo tinham, sem dúvida, sido suscitadas
pela inveja e a cupidez. Finalmente, uma vez abolida a Ordem, os
irmãos foram geralmente acolhidos em mosteiros. Na Escócia e na
Irlanda, os cavaleiros nunca foram maltratados.Em Espanha, fecharam-se nos seus castelos e só de lá saíram depois de
terem recebido garantias de que seriam julgados com equidade. O
concílio de Salamanca, a 21 de Outubro de 13 10, declarou unanimemente que os acusados de Castela, de Leão e de Portugal estavam livres e absolvidos de todas as acusações e delitos que lhes haviam sido imputados. Do mesmo modo, em 1312, o concilio de Tarragona declarou inocente o Templo. E foram fundadas novas ordens que recolheram os bens e onde os irmãos fugitivos puderam ingressar. Foi o caso da Ordem de Nossa Senhora de Monteza, criada e colocada sob a tutela da Ordem de Calatrava, que acolhera ela própria Templários. Do mesmo modo, foi criada em Portugal a Ordem Militar da Milícia de Cristo e os cavaleiros conservaram até o manto branco e a cruz vermelha do Templo. Em 1321, a Ordem de Cristo contava mais de cento e sessenta comendas e todos os seus membros eram Templários portugueses ou franceses. Trinta
e cinco anos mais tarde, a sede da nova ordem, primeiro fixada em
Castro Marim, foi transferida para Tomar, na antiga comenda provincial portuguesa da Ordem do Templo.Em Itália, os irmãos recusaram-se, de um modo geral, a comparecer às citações dos inquisidores. No Rossilhão, na Catalunha, dependente do rei de Aragão, inúmeros Templários tiveram tempo para entrar na
clandestinidade ou de colocarem os seus castelos em estado de defesa. Na Catalunha, recusaram apresentar-se às convocações e fecharam-se nas suas fortalezas de Miravet, Ascon, Montco, Cantavieja, Villel, Castellot e Chalamera. Quando foram buscá-los, defenderam-se vigorosamente, com o apoio activo da população.
Assim, a Ordem não fora de modo algum aniquilada. Nem sequer em França. A sobrevivência era possível, a coberto de outras ordens, ou na sombra. Dado que não podia suprimir todos os vestígios dela, Filipe, o Belo, empenhou-se pelo menos em liquidar o seu poderio.

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